FOTOS NO CELULAR?
SOCORRO!
Seleciono as fotos que vou imprimir.
Não quero deixar momentos bons
em algum celular velho
Por Walcyr Carrasco
Época Digital
01/08/2017 - 11h14
Lançamento de novela. Festa.
Imprensa. Emoção. Minha obra! Um garçom, alguns metros à frente, passa com uma
bandeja de água e refrigerantes. Morro de sede. Quero um refrigerante. Dou um
passo. Uma jovem aproxima-se sorrindo, celular na mão.
– Posso fazer uma foto?
Sorrio de volta, expondo todos os
meus dentes como um jacaré. Ela clica.
– Ah, desculpa, não saiu boa. Vou
fazer outra.
Já proprietária de mim, afasta-me
uns metros para uma posição melhor. Clica de novo. Termina. O garçom na direção
contrária. Que sede. Alguém me puxa. Celular na mão. Sorrio de novo. E de novo,
de novo, de novo. Quando finalmente alcanço o garçom, a Coca Zero que eu queria
acabou. Vou pedir para trazer uma, mas alguém me puxa para... uma foto!
Já ouço alguém dizendo que é o
ônus de ser famoso. Não é. Tente dar uma festa de aniversário. Você passará o
tempo todo peregrinando de foto em foto com os convidados. Se quiser comer uma
fatia de seu próprio bolo em paz, terá de se trancar num armário. Quanto maior
a festa, mais e mais fotos. Sempre o mesmo mantra.
– Deixa fazer mais uma para ficar
boa...
E você estica os lábios de novo,
para imortalizar aquele momento de felicidade. Huuumm... bem... felicidade?
Certa vez, viajei com um amigo. Como ele é alto e de braço comprido, entrou num
rio e fez bem uns 40 selfies dele mesmo sorrindo. O sorriso só sumiu quando o
celular mergulhou no rio.
Acredito que a maioria, hoje,
prefere fotografar a desfrutar uma viagem. No exterior, registram monumentos,
fazem selfies em frente a paisagens. Mas será que realmente veem a paisagem?
Houve um tempo em que se fazia piada dos turistas japoneses. Todos passavam a
viagem no clique, clique. A piada acabou, o clique, clique se tornou mundial. O
que acontece com o resultado de tanta atividade fotográfica?
Nada.
Houve a época dos slides. Para
mostrar, era preciso um projetor. Quando um amigo incauto visitava, era
obrigado a assistir. Um tédio enquanto se viam os pombinhos na praia, na
montanha, posando com esquis velhos. Era obrigatório gostar. Mas essencial
medir as palavras.
– Bonito aquele hotel que vocês
ficaram.
– Gostou? Mostro de novo!
Agora, na época fluida do
registro eletrônico, nem existe mais visita para ver slides. As pessoas
publicam fotos e vídeos nas redes sociais o tempo todo. Querem que o universo
contemple um café expresso. Se querem mostrar algo, pessoalmente, deslizam as
imagens pelo celular, uma atrás da outra.
O pai orgulhoso:
– Vai ver a gata que minha filha
ficou.
Vejo um antúrio.
– Não, não é isto aqui.
Desliza. Uma festinha de
aniversário.
– Foi o aniversário do filhão.
Bonitinha a foto, não, esta aqui com sorvete no nariz. Quase congelou o
narizinho coitado, de tanto botar sorvete para dar o clique. Espera.
Desliza. Ele, a mulher e dois
casais comem pizzas.
Desliza. Um nude do casal.
– Ixi, não conta para minha
mulher que você viu, prometi deletar.
Que compulsão é essa de fazer
nudes?
Desliza. Surge um rapaz bombadão.
Pelado. Dá um grito. Desliza. Aparece a foto de uma adolescente com aparelho
nos dentes. Mas já perdeu a vontade de mostrar imagens. Imagino o que mais tem
no celular.
Contemplo meu próprio aparelho. A
memória carregada de fotos. Tornou-se falta de educação não registrar certos
momentos. Amigo clica, clico de volta. Como se retribuísse. O que vou fazer com
tudo isso, apagar? Minha mãe deixou-me um álbum de fotografias. Às vezes,
folheio, vejo minhas fotos de menino, parentes. Quando as vejo, compartilho
aqueles momentos bons, específicos. Sinto uma emoção. Quero fazer como minha
mãe, preservar imagens.
Corajosamente, falo com meu
assistente, Felippe.
– Quero imprimir as fotos do meu
celular.
– Ninguém mais faz isso –
revolta-se ele.
– Se existe serviço de impressão,
é porque fazem.
Assim, neste exato momento,
seleciono as fotos que vou imprimir. Depois, o que farei com elas? Talvez um
velhinho numa lojinha centenária encontre um álbum de fotografias cheio de
poeira. E me venda. Se é que ainda existirão velhinhos e lojas centenárias.
Colarei as fotos nas páginas, revivendo a cada uma a emoção. É coisa antiga,
sei. Mas não quero abandonar momentos tão bons, família e amigos tão queridos,
em algum velho celular descarregado.
***
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