terça-feira, 7 de junho de 2016

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ESTUPROS

FOLHA DE S. PAULO - 02/06/2016 

(Por Contardo Calligaris) Sexta-feira passada, três amigas jantavam num restaurante de Santa Monica, na Califórnia. Uma delas observou um casal, sentado a uma mesa próxima: o homem esvaziou um líquido no drinque de sua parceira – às escondidas, de modo que a parceira não se desse conta disso.

As amigas decidiram agir. Primeiro, conseguiram encontrar a vítima potencial no banheiro (antes que ela bebesse a poção). Logo elas alertaram os funcionários do restaurante e pediram para revisar, junto com eles, a gravação da câmera de segurança; verificaram, assim, que o homem tinha de fato acrescentado algo ao drinque da mulher. A polícia foi chamada e prendeu o homem na hora. A vítima que se salvou ficou estupefata, pois o candidato a estuprador com a ajuda de um "boa noite, Cinderela" era seu melhor amigo.

Agora, imaginemos que três amigos vejam o homem misturar o líquido suspeito no drinque da mulher que o acompanha. Há chances (quantas?) que eles achem engraçado e fiquem rindo enquanto o casal sai do restaurante com ela cambaleando. Se eles confrontarem o cara, há chances também (quantas?) que ele os conquiste falando, por exemplo, que a "mina", de qualquer forma, merece"¦ e, se eles quiserem um pedaço, é só ir para o estacionamento.

Agora, certamente alguns homens agiriam como as três amigas do exemplo. Mas quantos? Um bom psicólogo social (Philip Zimbardo seria ideal) poderia produzir um protocolo de experiência para conhecermos as porcentagens. Note-se que, infelizmente, as experiências em psicologia social revelam quase sempre que a realidade é pior do que a gente imaginava.

Acredito que existe, sim, uma cultura do estupro. E gostaria de me perguntar como ela nasce e como autoriza os estupradores, mas antes disso quero tentar entender quais são as fantasias possíveis de quem estupra. Não é tarefa simples.

Voltemos ao "melhor amigo" da vítima que foi salva: qual pode ser a fantasia sexual de alguém que droga uma amiga para poder abusar dela?

Existe uma resposta propriamente idiota, que é preciso descartar de antemão. Segundo essa resposta, o homem, naturalmente fogoso, sentiria uma excitação incontrolável. Por esse caminho, aliás, a mulher se tornaria responsável pelo estupro que sofre: ela quer ser desejável, e o cara não se controla, não é? É bom saber que essa dinâmica é inexistente na espécie humana.


"O grupo é uma fantasia em si – a fantasia de descansar da responsabilidade individual, sendo apenas o instrumento de uma vontade coletiva. Vamos fazer trote em calouro? Vamos espreitar a outra torcida e enchê-la de porradas?"



Então, perguntemos: de onde vem o desejo do estuprador? Há várias respostas possíveis.

Um caso, não muito frequente, é que o estuprador se excite com uma fantasia necrofílica. O "boa noite, Cinderela" (ou equivalente) proporciona-lhe um cadáver com o qual brincar. Essa paixão pelo corpo inerte (morto) é provavelmente um sonho de controle sobre o corpo materno, mas o que importa é que, com essa fantasia, é possível ser carniceiro, comer cadáveres deixados por outros (como num estupro coletivo), mas é difícil violentar.

Outro caso, menos raro, é o do estuprador despeitado: ela quer ser desejada, mas diz que não é por mim. Vou lhe mostrar que ela me deseja, mesmo que seja contra sua própria vontade"¦

O mais frequente é que a excitação sexual se origine na própria violência. O estupro não é um jeito de gozar de uma mulher desejada, é um jeito de gozar"¦ do estupro. Nos estupros em guerras, saques, invasões: a própria violência é a única fantasia.

Nesse caso, aliás, a violência é quase sempre de grupo. Para quem participa de um estupro coletivo, além da violência, o que importa é o grupo, muito antes da mulher estuprada, que é quase um pretexto.

O grupo é uma fantasia em si – a fantasia de descansar da responsabilidade individual, sendo apenas o instrumento de uma vontade coletiva. Vamos fazer trote em calouro? Vamos espreitar a outra torcida e enchê-la de porradas?

O que excitou os 30 do Rio de Janeiro não foi a jovem desacordada, foi a cumplicidade com o grupo. O legislador reconhece que, a partir de três pessoas, o próprio fato de fazer grupo constitui um crime mais grave.

Mais uma pergunta: na cena do estupro do Rio de Janeiro, onde está o gozo? A resposta freudiana não é para principiantes: a crueldade e o sadismo são formas invertidas de masoquismo. Ou seja, na hora de violentar, os caras se excitam imaginando ser a menina que eles estão abusando. Eles se sentem muito machos bem na hora em que sonham ser estuprados.





Italiano, Contardo Calligaris é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias).

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