quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

ZÉ TORRES, O ALCE

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O Velho Marinheiro, nosso Lobo do Mar, acompanhava com impaciência evidente a falação besta de Zeca Comedor, como gostava de ser chamado José Torres – um sujeito de alguma aparência e posse, que gostava de contar em alto e péssimo som (ainda que ninguém lhe perguntasse) suas peripécias sexuais. 

Para garantir assistência, Zé Comedor pagava cachaça e cerveja a todos os que se dispunham a ouvi-lo no bar do Carneiro. Tarefa fácil. O que mais se encontra ali é gente pronta, capaz de rir, aplaudir e pedir bis por um trago gratuito.

Naquele dia, José Torres estava particularmente insuportável. 

-- Com a mulher da gente, a coisa é diferente. Sexo só de vez em quando. E nada além do convencional. Ela tem que se comportar como esposa e mãe. Foi para isso que se casou. Ou não foi?

O Velho Marinheiro interrompeu a conversa:

-- José Torres: não sou homem de dar conselhos a ninguém, muito menos a um tipo como você: safado. Mas saiba que, a exemplo do dinheiro, vagina não aceita desaforo. Quem se gaba de pôr galhos na cabeça dos outros e despreza a companheira, cedo ou tarde, vira alce. Seu destino é ser corno. 


(Atualizado em dezembro de 2019)



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: DE VOLTA AO RIO

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FOTO: ARQUIVO GOOGLE


          Robertinho nunca foi homem de perder tempo com reflexões. Tecer planos, traçar estratégias? Nem pensar. 


Impulsivo, ansioso ao extremo, tocava a vida de primeira. Para ele, era como se o mundo fosse acabar nos próximos dias. Tropeçava, ensaiava um chororô, mas logo sacudia a poeira e, se não dava a volta por cima, tratava de pegar os remos e tocar o barco. Afinal, contas a pagar são impacientes, não perdoam atrasos. Se a vida não é nada fácil, imagine com a sobrecarga de juros e correção monetária?

Apesar dos percalços, Robertinho era uma espécie de arroz de festa. Sempre (ou quase sempre) tinha “causos” divertidos para contar – o que acabava dando a ele o status de “cara legal”, de palhaço das horas felizes. Mal sabiam que, no íntimo, era um sujeito entristecido a representar um papel que se impusera. Mau ator? Bom ator?

Sem se dar conta, isolou-se. Queimava horas pensando coisas ruins: nos tombos que levara, nas pequenas, médias e grandes traições de uns poucos supostos amigos, nas sacanagens de alguns chefes e subchefes, na falta de apoio para que pudesse realizar seus planos etc.

Sem se dar conta, Robertinho transformou-se num chato absoluto. Passou, ainda que inconscientemente, a atribuir aos outros o motivo principal de suas frustrações. Não raro, em geral após a terceira talagada, virava refém de uma ira nada santa, mas súbita. E desandava a falar impropérios nos quais nem ele via sentido.

Numa madrugada, meio que do nada (Robertinho, insisto, nunca foi dado a reflexões), veio o estalo: ora, as pessoas só fazem conosco o que lhe permitimos que elas façam. Logo, se há culpados por isso ou por aquilo, os culpados somos nós. Se, por uma razão ou por outra, não tínhamos alternativa a não ser aceitar as cartas marcadas, leite derramado, nada a fazer. Somos o que deu para ser.

Robertinho não deu a volta por cima, mas voltou a remar. Agora, sem tanto peso na alma. Água que rola, vida que segue. Melhor assim. (OS - Atualizado em dezembro de 2019)
    

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

OS NÚMEROS ENGANAM



GOOGLE

-- Sei que vocês, jornalistas, embora vivam das letras, têm um gosto especial pelos números. Mas eu não me fio muito neles, não – iniciou a conversa o Velho Marinheiro, como quem não quer nada, mas louquinho da silva para enveredar pela discussão política.

Ananias, nosso repórter em fim de carreira, mordeu a isca:

-- Os números dão credibilidade à reportagem. Além do quê, os números não mentem.

-- Sei disso. Mas não se pode dizer o mesmo de quem produz e interpreta os números. Tenho pra mim que eles enganam tanto quanto as palavras, se não enganarem mais. Não por acaso, políticos são obcecados por números. E isso não é uma escolha casual.


-- Mas os números, Velho Marinheiro, permitem comparar o que governos fizeram. Dão ao povo condições de escolher com critério seus representantes – argumentou Ananias com sua sabedoria de botequim.

-- Bobagem, meu jornalista. Se isso fosse verdade, não teríamos os governos que temos. A opinião do povo não é parâmetro pra nada. De que vale dizer que este governo construiu em quatro anos o dobro de casas e hospitais em relação a seu antecessor, se está deixando a conta para o sucessor? Ora, construir e não pagar é coisa fácil, qualquer um pode fazer. Até nós dois – dois bestas. Quer outro exemplo, Ananias? Se a dita economia mundial está superaquecida, se os preços dos produtos estão nas alturas, é natural que, em termos absolutos, em termos de grana, as exportações cresçam. Isso é fruto de uma série de fatores. Não é obra de um governo...

-- Está certo, está certo, mas...

-- O que importa é saber o quanto avançamos em relação aos outros. Qual o quê! O Brasil não vai de fato pra frente porque não gosta da verdade, prefere se comparar com ele mesmo. É mais fácil e de grande utilidade para o jogo político rastaquera que aqui se pratica, no qual o roto fala do rasgado.

-- Pensando bem...

-- Pensando bem vamos pedir logo a saideira. Romualdo Bastos está chegando com aquela sua empáfia de cruzadista.

(OS 2014 - atualizado em dezembro de 2019)



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: A VOZ DA NATUREZA

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Foto: Arquivo Google

A santa criatura ia todos os dias ao parque público próximo de sua casa. E por ali ficava um tempão danado, sem vontade de voltar.

Caminhava descalça, sem pressa alguma. Mandava beijos ao sol, sorria para o vento, conversava com as plantas, trocava confidências com os pássaros e recitava poemas para o gato pardo e sem dono, também filho do Pai.

Saía do parque em paz com o mundo, leve como uma borboleta.

Mas nada, nada mesmo, lhe dava maior satisfação que conversar com a velha e frondosa árvore que ficava a poucos metros do portão de saída. Era sempre sua última – e mais longa – parada. Tinha certeza de que a árvore a ouvia com a máxima atenção, compreendia seus sentimentos e que só não lhe respondia por uma única razão: árvores não falam.

Mas, eis que um dia a árvore falou:

-- Querida criatura, três coisinhas: não fume antes de me abraçar, seu bafo é insuportável; não pise nas minhas raízes; por fim, um pedido: vá vender sua loucura em outra freguesia. (OS - atualizado em dezembro de 2019)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

VOSSA EXCELÊNCIA É VEADO?

MYRRIS


O fato indiscutível é que o dedão do pé direito já estava em carne viva, sem que o bicho do pé desse sinal de morte. Ou de vida. Nem poderia. Era imaginário. Existia apenas na cabeça do Velho Marinheiro, nosso imbatível Lobo do Mar, homem de muita experiência, poucas palavras, paciência nenhuma. Sem saber dos riscos que corria, o candidato deitava falação para aquela plateia miúda, mas atenta, porque a conveniência gera milagres.

Enquanto o homem, sem corar nem desbotar, impávido colosso, prometia mundos, fundos e um bocadito mais para toda a humanidade e emprego dos bons para todos os presentes – uns dez gatos pingados, no máximo –, o Velho Marinheiro confrontava a foto do “santinho” com a imagem ao vivo da triste figura. Não se conteve:

- Afinal, qual é a cor original de seu cabelo? Acaju é que não é. Asa da graúna não pode ser.

Político tarimbado, o candidato se fez de surdo. E deu vazão à cantilena ordinária:

- Amigos, eu não posso resolver tudo. Mas farei de tudo para tudo resolver. Em nome de meu povo, por amar cada um de vocês, a começar por este senhor tão fofo.

O Velho Marinheiro se inquietou e quis saber:

- Fofo? Quem é o fofo aqui?

- O senhor, meu lindo.

- Não me faltava mais nada. Já devia ter morrido. Estou fazendo hora extra. Vou cochilar. Mas, antes disso, com o perdão da pergunta indiscreta: Vossa Excelência é veado? (OS - 2013 - atualizado em dezembro de 2019)



terça-feira, 3 de dezembro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: ARGEMIRO FOI COM AS OUTRAS E SE DEU (QUASE) MUITO BEM

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Ilustração: arquivo Google


Argemiro nunca foi aluno brilhante. Do antigo primário à faculdade, o máximo que conseguiu foi assegurar, quando muito, uma vaga no grupo dos que não cheiram nem fedem. Ou seja: um lugar no pelotão dos medíocres. Ele também nunca se destacou pela capacidade profissional. Não obstante, conseguiu subir na vida, como diz o vulgo. Agradecido, reconhecia que devia muito de sua ascensão ao velho e falecido pai, um ex-comunista metido a estrategista de botequim.
Desde cedo, o pai lhe ensinou algumas coisas, entre as quais:

(1)  Nunca emitir opiniões sobre assuntos polêmicos: política, religião e futebol, por exemplo. Que benefício lhe traria se posicionar sobre aborto, casamento gay, liberação da maconha e temas afins? Nenhum, evidentemente.

(2)  Agora, na impossibilidade de permanecer calado, concordar sempre com a opinião do mais forte. Afinal, um comuna legítimo sabe que é preciso beijar a mão que não pode cortar.

(3)  Que jamais se preocupasse em ser rotulado de Maria vai com as outras. O que importa é desfrutar de bom dinheiro para levar vida confortável e garantir uma velhice sem grandes sobressaltos.

E assim foi feito. Argemiro engoliu sapos e mais sapos, muitos dos quais amarrados com arame farpado. Paciência. Como o velho e sábio pai lhe dizia: “Ter opiniões incisivas sobre tudo é coisa só para gente bem-nascida. Sufoque o ser para ser.” Quanta sabedoria!

Aposentado e viúvo, com os dois filhos morando no exterior, Argemiro gosta de acompanhar o noticiário. Diante de assuntos polêmicos e discussões mais acaloradas, nunca sabe de que lado está. Afinal, não há mais ao seu lado um poderoso com quem possa concordar. Mas, pensando bem, que importância tem isso? (OS - Atualizado em DEZEMBRO de 2019)

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

MULHER PÚBLICA

GOOGLE

Ananias, nosso jornalista em fim de carreira, estava literalmente inconsolável:

-- Não me faltava mais nada, Velho Marinheiro, mais nada mesmo. Além de não pegar o trabalho de assessoria, fui humilhado. A deputada me colocou abaixo de cachorro.

-- O que você fez? – quis saber o Lobo do Mar.

-- Nada. Só a cumprimentei por ter sido eleita.

-- Só por isso? Não pode ser.

-- Também lhe disse: “Agora, a senhora é uma mulher pública”. E ela retrucou: "Mulher pública é sua mãe, vagabundo!"



-- Tenha paciência, Ananias. Você morre pela boca. Só tomando uma lapada. 

(OSilveira 2014 - atualizada em novembro de 2019)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: O FILHO DAS "PUTAS"

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-- Doutor, eu estou aflito, angustiado mesmo. Pensei em dar um fim na vida.

-- O que é isso, rapaz?. O que está acontecendo?

-- Desde sempre me chamam de filho disso, de filho daquilo... Nunca dei bola. Mas, adulto, resolvi investigar.

-- E daí?

-- Daí que todos, sem exceção, me dizem que mamãe saía com todo mundo, tinha fogo inapagável, que papai sempre foi chifrudo...

-- É verdade. Conheci bem Isaura, muito bem mesmo. Ela tinha um fogo de assustar equipe do corpo de bombeiros. Mulher de valor. Fez a alegria de muita gente. A minha, inclusive. Isaura cobrava caro. Mas dava em dobro. Tenho ótimas lembranças dela.

-- Quer dizer, então, que eu sou mesmo um filho da puta?

-- Não, não. Isaura era estéril, nunca pôde ter filhos. Você foi adotado.

-- Graças a Deus. Puta merda. Que bom, que bom! Não sou um filho da puta. Fui criado por puta. Mas não sou filho da puta. Isso faz grande diferença. Que Deus a tenha. Foi boa mãe.

-- Está vendo. Ia fazer besteira à toa.  

-- O senhor conheceu minha verdadeira mãe?

-- Claro. Conheci, sim. Mas estive com a falecida e igualmente saudosa Lucinda poucas vezes. Lucinda e Isaura trabalhavam no mesmo ponto... Nunca ninguém soube quem é seu pai verdadeiro, acho que nem Lucinda. Mas isso é coisa do passado. Deixe pra lá. A vida está aí para ser vivida. Sem traumas. Aliás, se eu fosse você, aproveitava a oportunidade e me candidatava a deputado. 

(OS - Atualizado em novembro de 2019)

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PESSOAS? Da maioria absoluta desgosto profundamente. Pela minoria absoluta, tenho afeto. Na dúvida, durmo com o cão que já não tenho. Saudade do Guga. Por Orlando Silveira. Em "Rapidíssimas"
https://orlandosilveira1956.blogspot.com.br/2017/09/rapidissimas.html#comment-form



quarta-feira, 20 de novembro de 2019

NÃO É O MELHOR, MAS...



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ILUSTRAÇÃO: ARQUIVO GOOGLE




Não há quem não conheça Josué Lemos na Vila Invernada, bairro pobre da zona Leste de São Paulo, local em que nasceu, criou-se e entrou na pior idade. A vida dura o obrigou a se virar nos trinta, seja lá o que isso queira dizer. Ele é uma espécie de “faz tudo”, pau pra toda obra. Ergue e pinta paredes, enche laje, desentope canos, troca fiação, remenda calçadas e muros, cata lata, vende papelão, faz carreto na feira.

Para Josué, não há tempo ruim. Gaba-se de estar a serviço da “comunidade” 24 horas por dia, de segunda a segunda, incluindo feriados. Só não trabalha na sexta-feira da Paixão. E o que é melhor – para os clientes, claro: é barateiro. Sobe no telhado por qualquer bagatela, apara grama de quintal e trepadeira de muros por duas pingas e uma cerveja. Nunca reclama do que lhe pagam: “Eu preciso de pouco pra viver”.

Josué só não gosta muito de fazer serviços na casa do Velho Marinheiro, nosso Lobo do Mar:

-- Ele é exigente demais, põe reparo em tudo, difícil agradar aquele homem. Quando começa a caçar o bicho do pé, então, me deixa nervoso, sei que a bronca é certa. Só vou lá por causa de dona Mafalda, um doce de criatura.

Sejamos justos: que o Velho Marinheiro tem gênio ruim, todo mundo sabe; mas não é o único a reclamar de Josué. Ao contrário. É raro encontrar alguém que elogie os serviços que faz. Afinal, ninguém pode ser bom em tudo, não é? Por que o contratam, afinal? Porque é boa praça, está sempre disponível, não bebe durante o expediente, é barateiro e de confiança, ao contrário da maioria de seus concorrentes, cujos serviços, em termos de qualidade, igualam-se aos seus.

Josué sabe disso.

Quando alguém reclama disso ou daquilo, dispara seu bordão predileto: “Eu sou Josué Lemos. Não sou o melhor. Mas sou o que temos”.

(OS 2013 - atualizado em novembro de 2019)



terça-feira, 19 de novembro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: MÃE, O PAI ARRUMOU EMPREGO!

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Ilustração: iStock

Um dos pequenos, tão logo viu o pai abrir a porta com um pacote na mão esquerda, começou a berrar de satisfação:

-- Mãe, o pai arrumou emprego, o pai arrumou emprego, vem ver, mãe, ele comprou maçã pra nós!

Os irmãos engrossaram, com igual entusiasmo, a gritaria do precipitado. E avançaram sobre o pacote com as frutas.

Ao ver a cara amarrotada de Toninho, Odete, de imediato, teve certeza de que a história não era bem aquela. Conhecia o marido como ninguém. Mas nada falou além de “oi”. Lavou as maçãs em silêncio, deu uma para cada filho, esperou que os três voltassem a brincar no quintal. Então, puxou conversa:

-- Conseguiu alguma coisa?

-- Nada, Odete. Ainda não foi dessa vez.

-- Calma, Toninho. Uma hora vai dar certo.

-- Deus te ouça. Não sei como vamos pagar o próximo aluguel.

-- Meu pai e meu irmão ficaram de nos ajudar. Fome – tenho fé – não vamos passar, não. Mas beber não ajuda em nada, homem, só faz piorar o que está ruim.  

-- Eu sei. É que eu preciso dormir essa noite.

Em busca de outra maçã, um dos meninos retornou à cozinha e perguntou pelo pai.    

-- Foi dormir.

-- O pai é gozado. Arrumou emprego e continua de cara feia.

-- Liga não, filho. Você não conhece seu pai? Está tudo bem. Brinquem mais um pouquinho, depois vamos tomar banho, jantar e dormir.

-- Tá bom, mãe. Fala pra ele trazer mais maçãs, amanhã.

(OS - ATUALIZADO EM NOVEMBRO DE 2019)