SARGENTO RAIMUNDO
Faz uns quarenta anos que não o vejo. Não sei se está vivo, espero
que sim. Brinquei muito com seus dois filhos, Júnior e André, dos oito aos dez
anos, na infância pobre de Engenheiro Goulart. Do nome da filha caçula não me
lembro: era bebê, não brincava com a gente, claro. Não tinha idade para jogar
bola de gude, empinar quadrado, muito menos para rodar pneus pelas ruas
íngremes e sem asfalto daquele bairro esquecido pelas “autoridades”, situado
pra lá da Penha, onde a maioria das casas estava sempre por esperar
(inutilmente) reboque nas paredes.
Nossa casa era tida como uma das melhores da região. Era pintadinha,
tinha até jardim, calçada e um carro “luxuoso” na garagem estreita, sob a laje
para estender as roupas no varal. O que, de certa forma, conferia certo status
ao pai e à mãe. Para complementar, o pai era um homem diferenciado: comprava –
e lia – livros. Já tinha uma pequena biblioteca. Além disso, por míope, usava
óculos de lentes grossas – fundo de garrafa, como se dizia naqueles tempos. Por
isso, o chamavam de professor.
Em junho, nossas festas juninas eram sagradas. Cada vizinha trazia
alguma coisinha. Quem nada podia trazia apenas sua penca de filhos. Já naquela
época, ouvia minha avó, mãe do pai, dizer que o Sargento Raimundo não batia
muito bem da cabeça. Afirmação que era referendada pelos adultos de casa e da
vizinhança. Eu não entendia bem por quê. Só achava divertido ver aquele crioulo
forte e trabalhador (como todo policial já era obrigado a fazer bicos) com seu
jeito impaciente, meio estabanado.
Voltamos a residir no Brás. A mãe jamais suportou morar ali, em
Engenheiro Goulart. O pai comprou um apartamento no nono andar de um prédio,
onde morou por quase cinquenta anos. Nossa vida melhorara. E foi aí, mais
crescido, que comecei a desconfiar que, de fato, Sargento Raimundo não tinha
todos os parafusos. Por mais de uma vez, ele foi até nosso prédio, pegou o
elevador e, em vez de tocar a campainha, enfiou um bilhete debaixo da porta e
partiu, sem nos ver. O que diziam os bilhetes? Coisas assim: “Estamos bem,
graças a Deus. E vocês? Espero que estejam também. Apareçam. Abraços. Sargento Raimundo”.
Mas, aparecer como? Eles também haviam mudado de casa. E não deram o
novo endereço para ninguém. (2013)
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