CRUZ DE FERRO
(Por Otávio Nunes) Nuremberg
(Alemanha), 16 de outubro de 1946.
O
general Hans Fritz Strudelfen acordou cedo naquele dia frio. Sabia que tinha
poucas horas de vida até ser chamado ao cadafalso e receber do carrasco o nó da
corda no pescoço. A cena imaginada lhe causou repulsa e de modo instintivo
levou a mão à nuca e sentiu uma vertigem estranha e uma sensação de completo
abandono, aceitando totalmente a fatalidade.
Lembrou-se
dos bons tempos na Polônia ocupada, onde tomava conta de um campo de
concentração. Certa feita, recebeu pelo telégrafo parabéns pelo seu trabalho no
destino final dos judeus, ciganos e comunistas que infestavam o país de Chopin.
Seu chefe maior, o general Willhelm Keitel, assegurava que ele, Strudelfen,
receberia a Cruz de Ferro, símbolo maior do heroísmo germânico. Keitel afirmava
que o próprio Führer, quando visitasse a frente leste, lhe entregaria a
medalha.
No
entanto, jamais recebeu a honraria. No dia em que o Führer viajou ao leste,
Strudelfen ligou para o alto-comando, já na Polônia, para tentar falar com
Keitel, que tinha ficado em Berlim. Quem lhe atendeu foi Alfred Jodl, que
garantiu nada saber sobre a medalha e que a presença de Strudelfen na reunião
com o Führer não estava garantida. Não fora convidado. O general continuou no
seu campo de concentração na Polônia, não foi à reunião e jamais soube por que
não recebera a Cruz de Ferro.
Ele
achava que o culpado poderia ser Heinrich Himmler, comandante supremo das SS,
que o odiava e que em mais de uma oportunidade tentara lhe prejudicar. Até a
Gestapo esteve atrás do general, em 1941, a pedido de Himmler. O único amigo
que Strudelfen tinha no alto-comando era o ministro Albert Speer. Mas o infeliz
era civil e nada poderia fazer por ele, um velho, que fora capitão em 1918,
quando teve um dos dedos dilacerado numa trincheira na fronteira belga.
Otávio Nunes é jornalista |
Strudelfen
tomou a sopa em sua cela. Havia meses que não sabia o que era comer bem. Daria
tudo por um prato de goulash, como aqueles que sua esposa Frida lhe preparava,
quando ela estava viva e moravam numa fazenda em Leipzig, no mesmo local em que
nasceram todos seus ancestrais e onde vivera o divino Sebastian Bach. Seu avó
fora general-de-divisão no exército prussiano e homem de confiança de Otto Von
Bismarck. Seu filho, o jovem capitão Udo Strudelfen, repousava a sete palmos ou
a céu aberto em algum canto da gélida Stalingrado, tombado pelas balas de
Stalin.
Em
poucos minutos Strudelfen imaginou toda sua vida de mais de 60 anos a serviço
da Alemanha. Acreditou no terceiro Reich como a salvação para todos os males de
seu povo e abraçou a figura messiânica e redentora do Führer, desde a primeira
vez que o vira discursar, numa cervejaria de Munique. A platéia era formada por
homens sujos, maltrapilhos, esfomeados e sem destino, como era todo alemão nos
anos doloridos e caóticos da República de Weimar. Pensou tanto que adormeceu em
sua cama dura.
Acordou
com a voz de um oficial russo ordenando-lhe alguma coisa que ele não entendeu.
Mas sabia que sua hora tinha chegado. Iria ao encontro do carrasco. Continuava
com sono, mas sabia que dormiria para sempre, dali a pouco, depois do nó da
corda lhe apertar a garganta.
Minutos
depois um soldado chega apressado à cadeia trazendo uma correspondência
importante para o general Strudelfen. Era a Cruz de Ferro, acompanhada de um
papel amarelado onde o próprio Führer elogiava seu general pelos serviços
prestados ao Reich. O soldado alfinetou lentamente a medalha na lapela do
pijama xadrez do general e o bilhete no bolso. Depois, deu as costas ao corpo
que balançava na corda, ainda meio quente.
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