NAS MARGENS DO RUBICÃO
(Por Otávio Nunes) O
centurião romano Lancírius Escudus foi convocado às pressas pelo imperador
Otávius, o Augusto, naquela manhã de março do ano 2 d.C. No palácio, o militar
recebeu a ordem de partir com sua tropa rumo à Gália Cisalpina (atual França).
Sua missão: encontrar a espada que Júlio César tinha usado, havia dezenas de
anos, na conquista daquele território, numa das inúmeras batalhas contra os
guerreiros gauleses chefiados por Vercigentorix.
Pelas
informações de Augusto, a espada estava guardada num buraco de árvore, às
margens do Rio Rubicão, que separava a Gália da península italiana. César
guardara a sua arma no mesmo dia em que decidira voltar a Roma com suas
legiões, o que era proibido pelas leis da então República Romana.
Na
época, os patrícios (a elite romana) tinham verdadeira ojeriza a ditadores,
imperadores e outras formas de autoritarismo. Essa aversão seria contornada ao
longo dos séculos seguintes. Mas quem governava, no momento, era o senado,
republicano.
Pode
parecer estranho, no entanto havia fiapos de democracia na Roma republicana. É
claro que esta democracia existia somente entre e para os patrícios. Se a
agente atentar bem, notaremos há um tênue vínculo entre a democracia deles e a
nossa. O que separa uma da outra é a quantidade de eleitores. Cá, em nossas
plagas, todo mundo vota. Mas os nossos patrícios (como os de Roma) continuam a
mandar e a ter a riqueza em suas mãos.
Tive
um professor que dizia sempre ser o poder político uma exclusividade das
elites. Não apenas o poder político, mas sobretudo o econômico (riquezas e
posses) e o cultural (o do conhecimento, ciência e cultura). Meu mestre
levantava a voz e garantia: “Governar é para as elites. Povão é tudo
pau-mandado e o resto é pura demagogia”. Deixemos, porém, este campo complicado
da Sociologia e voltemos ao nosso relato.
Quando
resolveu atravessar o Rubicão, em 49 (a.C.), César pronunciou a famosa frase: alia
jacta est (a sorte está lançada). Logo depois guardou a espada no buraco da
árvore.
A
história era quase que totalmente desconhecida havia vários anos, pois muitos
soldados já estavam mortos. Perecia-se cedo naqueles tempos duros da
Antigüidade, em que não havia hospitais, planos de saúde, remédios
sintetizados, vacinas, seguro de vida, SUS, comida em abundância, sossego,
justiça, polícia. Deuses? Havia muitos. Um montão. Tanto que um homem, na
Judéia, pregou durante seus 33 anos de vida a presença de apenas um Deus. E o
mundo não seria mais o mesmo, depois. Voltaremos a ele.
Otávius
ficou conhecedor da história da espada por intermédio do senador Púxius Sacus,
um de seus homens mais fiéis no senado romano, instituição secular que a cada
dia perdia sua razão de ser, em vista do crescimento do poder imperial.
Púxius,
por sua vez, soube por um dos únicos legionários de César ainda vivo, que
presenciou o fato. Este velho homem de batalhas vivia no seu sítio em
Herculano, à sombra do Vesúvio, no Sul da península itálica. Esta cidade, junto
com a vizinha Pompéia, seria destruída uns setenta anos depois, pela erupção do
grande vulcão.
OTÁVIO NUNES É JORNALISTA |
O
idoso soldado, cujo nome a História infelizmente não preservou, tinha servido
no exército de Marco Antonio, principal general de César. Quando Júlio César
foi assassinado por um grupo de senadores, entre eles Brutus e Cássio, o
general Antonio, o jovem Otávius e outro militar famoso em Roma, Lépido, se
digladiaram pelo poder. Foram anos de guerra civil em quase todo o império.
Lépido
não deu nem pro cheiro e o poder foi dividido entre os outros dois, com ligeira
vantagem para Otávius, que ainda não era Augusto. Marco Antonio pegou suas
legiões e foi chorar as pitangas no Egito e se encantou com a bela rainha
Cleópatra, que já havia seduzido César. Ela devia ser realmente irresistível e
mais avassaladora que o Vesúvio, pois Antônio lá ficou por mais de 10 anos, até
as tropas de Otávius invadir Alexandria (que era então a capital do Egito) e
acabar com o romance dos dois pombinhos. Mas não é isto que quero narrar.
Voltemos ao centurião e ao imperador.
Augusto
queria a espada de César para trazer sorte a seu reinado e torná-lo mais forte
perante o senado. Esta casa legislativa não se conformava com o poder absoluto
daquele sujeito franzino e com cara de bobo, mas que era herdeiro legal de
César, havia derrotado o grande Marco Antônio e queria se perpetuar no poder.
Lancírius
deixou Roma uma semana depois. Garboso e engalanado, trotava em seu cavalo à
frente de sua centúria (grupo de cem soldados), rumo ao Rubicão. Ele gostaria
de levar o velho homem de Herculano, mas o infeliz poderia não agüentar a
viagem. Em seu alforje, o centurião carregava um mapa de papiro com a
localização da árvore em que estaria a espada de César.
Durante
o trajeto, teve de enfrentar pequenos grupos da resistência gaulesa que
atiravam flechas de cima das árvores. Quando chegou à outra margem do rio, no
lado gaulês, sua centúria estava reduzida a menos de oitenta homens.
Prosseguiram assim até encontrar fortificações romanas e aumentar o efetivo de
soldados.
Depois
de um dia de viagem às margens do rio, o centurião chegou a um local que
parecia ser o indicado pelo velho soldado de Herculano. Havia uma pedra
avermelhada na margem do lado gaulês e uma carreira de dezenas de árvores
parecidas. Numa delas, estaria a espada de César.
Lancírius
só encontrou buraco na terceira árvore. Enfiou a mão e gritou, pois, lá dentro,
uma enorme abelha lhe picou o dedo. Os soldados correram para acudir seu
comandante e tentaram pegar o inseto. Um deles chegou mesmo a golpear o ar com
sua lança. Mas a abelha sumiu. Ainda com o dedo latejando de dor, o centurião
enfiou novamente a mão no buraco e puxou a espada. Estava tão enferrujada que a
lâmina tinha se transformado em pequenas serrilhas que se desfaziam ao toque
dos dedos.
Os
soldados fizeram uma rodinha para admirar a preciosidade e de repente um deles
gritou. “Mas esta espada não é romana, é gaulesa”, garantiu um soldado
baixinho, de ascendência grega, chamado Mikros Pequenopoulos. O centurião
Lancírius olhou detalhadamente o objeto, mostrou-o aos demais e todos
reconheceram: aquela espada não tinha sido forjada em Roma. Tudo levava a crer
que realmente era de um povo bárbaro, provavelmente dos homens de
Vercigentórix. “Mas porque César estaria empunhando espada gaulesa?”,
perguntou-se o centurião.
Ele
confessou a seus homens que não sabia como proceder. Como explicar a Augusto
que aquela espada não era romana? Mikros, formado numa academia ateniense que
ensinava o pensamento de Platão e Aristóteles, achou que seria melhor dizer a
verdade ao imperador. Seu argumento: a peça gaulesa seria, acima de tudo, um
símbolo da superioridade de César, bem como dos demais imperadores, em relação
aos povos bárbaros.
O
centurião Lancírius, que jamais pisara em solo grego, não entendeu bem a lógica
de tal raciocínio, mas aceitou assim mesmo. A centúria atravessou novamente o
Rubicão, pegou a Via Ápia e chegou a Roma dias depois. Mas Lancírius preferiu
ficar calado a respeito da espada e nada disse ao imperador.
Otávius
Agusto colocou a peça na parede de seu palácio e convocou os senadores para um
discurso de louvação a César. E a si próprio. Quando todos os homens já se
acotovelavam na enorme sala, pisando no luxuoso piso de mármore, o imperador,
ao empunhar e levantar a espada, disse: Ave César. Neste instante, a espada,
carcomida pelo tempo, quebrou-se e caiu ao chão. Somente o cabo ficou na mão de
Augusto.
Púxius
Saccus agachou-se rapidamente, pegou o pedaço e garantiu ao imperador que iria
consertar a arma na forjaria de sua família. Neste instante, Augusto olhou para
o toquinho de ferro na mão e esbravejou: “Mas...esta espada não é de César, nem
sequer romana”.
O
centurião Lancírius foi intimado a comparecer urgentemente ao palácio. Augusto
teve um chilique e gritou-lhe os maiores impropérios possíveis. O coitado do
soldado foi obrigado a lhe contar a verdade. Era realmente a espada de César,
mas fora tomada de um guerreiro gaulês. Só escondera o fato para não desagradar
o imperador. “Não precisava, centurião, já tenho bajulador demais”, disse
Otávius, tomado de ira.
Depois
de esbravejar e espumar bastante (seus inimigos o chamavam de babão, alguns
amigos, também), Augusto exigiu que seu soldado voltasse ao Rubicão e
procurasse novamente a verdadeira espada, que ainda deveria estar lá, em outra
árvore. Se não a encontrasse, poderia andar pela floresta a cata de alguma arma
jogada ao chão, pois naquele local as tropas de César tinham enfrentado os
gauleses numa batalha sangrenta. “Deve ter uma, entre uma ossada e outra”,
assegurou o imperador, que disse então que qualquer espada serviria, desde que
fosse romana.
Infelizmente,
Lancírius não pôde convocar sua centúria. Seu breve tempo foi gasto apenas para
chamar o grego Pequenopoulos. Arrearam os cavalos e partiram de volta ao
Rubicão.
Ao
chegar ao local, o centurião achou somente mais uma árvore com buraco e enfiou
a mão em busca do tão almejado objeto. Novamente, gritou, desta vez mais alto.
Uma cobra havia lhe mordido e não tinha espada alguma dentro da árvore. Agora,
no entanto, Lancírius não teria sorte. Morreu febril dois dias depois, sem
contar ao baixinho sobre a possibilidade de procurar a arma na floresta.
Com
medo de voltar sozinho a Roma, sem a espada de César e sem o seu centurião,
Pequenopoulos tomou outro caminho, rumo a Atenas, na Grécia, onde viviam seus
pais e sua ex-esposa que o havia traído com um arqueiro espartano.
Epílogo
(para acabar logo com esta história ridícula, pois não me ocorre outro final)
Augusto
perdeu definitivamente a possibilidade de ter a espada de César como símbolo de
autoridade sobre o senado e o populacho romanos. Mas Púxius Saccos mandou
forjar uma novinha, com ferro de Siracusa, e deu-a de presente ao imperador.
“Mas como esta lâmina nova pode ter sido de César?”, questionou. “O que o
senhor disser, acreditaremos”, garantiu o senador.
Roma
inteira deve ter acreditado, mesmo. Augusto governou por 41 anos e tornou-se o
primeiro e mais longevo dos imperadores romanos (de 27 a.C. a 14, d.C.). Como
podem perceber, Jesus Cristo nasceu no reinado dele e morreu no do governante
seguinte, Tibério. O último imperador da linhagem de Augusto foi Nero, que
ficou no trono de 54 a 68 d.C., deixando os historiadores estarrecidos: “Como
esta besta conseguiu ficar tanto tempo?”
Lancírius:
o bravo centurião foi jogado pelo grego baixinho nas águas do Rubicão e
devorado pelos peixes.
Pequenopoulos:
perdoou e voltou a viver com sua mulher. Ah! O amor é lindo! E perdoar é
divino. Porém, enquanto ele lia A República, de Platão, e A Poética, de
Aristóteles, sua companheira ia ao Partenon de Atenas encontrar-se com um
macedônio que se dizia descendente de Alexandre.
Púxius
Saccos: morreu envenenado, pois provava antes tudo que Augusto comia e bebia.
O
velho de Herculano: Antes de falecer no braço dos netos, balbuciou: “vocês não
viram uma fumacinha sair do alto da montanha?”
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