sábado, 15 de fevereiro de 2014

CLÓVIS CAMPÊLO

SEM TRADUÇÃO




(Dedico este texto à poetisa baiana Liris Letieres e seu olhar de petardo.)

Já disse o poeta que o olhar feminino não se traduz. Traz no seu íntimo todos os segredos e mistérios do mundo. E quem seríamos nós, pobres seres humanos do sexo masculino, para enveredarmos pela sinuosidade desses labirintos?

Mas, na inquietude das almas dos homens, também há um lugar para o mistério. O sexo forte existe acima de tudo para isso: capitular ante a sedução dos olhares de Eva e defender esse legado da horda sedenta que dele procurar se aproximar e abrigar-se. Um gigantesco trabalho, facilitado hoje pelas convenções sociais, pelo mito do amor e pelas conveniências do sistema em que vivemos.

Já disse um outro poeta (ou terá sido um cientista revolucionário?), que a atração do macho pela fêmea, que se dá sempre através do seu olhar, traz a identificação da conjunção genética adequada para a reprodução e a manutenção da espécie. Portanto, o tesão nada mais seria do que a ação da Natureza nos sinalizando sub-repticiamente sobre a chegada do momento decisivo para o encontro ideal. Nós, seres humanos racionais é que fazemos disso interpretações equivocadas ou confusas e desordenadas. Quanto se trata do olhar feminino, toda inocência poderá ser castigada.



Quem poderia interpretar, por exemplo, o olhar da Mona Lisa? Enquanto muitos se preocuparam com o seu sorriso, a exemplo do doutor Freud, que no alto do seu saber psicanalítico o interpretou como uma atração erótica subjacente de Leonardo da Vinci para com a sua mãe, para mim, são os olhos claros da madona que nos irradiam o mais profundo mistério. Segundo a Wikipédia, esse novo compêndio do saber universal, o olhar da Gioconda parece acompanhar quem a observa. É ao mesmo tempo incógnita e sedução, mas sem tradução.

E o que dizer do olhar dissimulado de Capitu, a personagem machadiana, que nos incomoda sem nunca ter sido visto por qualquer um de nós? Esse privilégio foi dado pelo autor brasileiro apenas a Bentinho, o Dom Casmurro, que por ela se apaixona (o mito do amor) e se desencanta, transferindo para o leitor a sua visão apaixonada (no início) e crítica (no final). A dúvida de Bentinho sobre Capitu e o seu olhar dúbio arrasta-se até os dias de hoje, deixando o mistério em aberto e nós sem condições de concluirmos a nossa leitura e interpretação pessoal. Uma eterna dúvida sem tradução, criando assim em nós a tradição da dívida.

Já disse o poeta que o olhar feminino não se traduz. Traz no seu íntimo todos os segredos e mistérios do mundo. E quem seríamos nós, pobres seres humanos do sexo masculino, para enveredarmos pela sinuosidade desses labirintos?
Recife, 2014



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