TRÊS PARES DE PATINS
No amplo adro de ladrilhos, o ruído surdo, enrolado, parecia
sepultar-se na terra. Os risos e os gritos da meninada embaraçavam-se na copa
da grande magnólia, iam aninhar-se nas torres da igreja. Os sinos de bronze
ruminavam, bojudos e quietos, o próprio silêncio. De quando em quando, a queda
de algum patinador provocava uma algazarra que aumentava a confusão. Alheio a
tudo, Betinho corria de uma ponta a outra com voltas arriscadas em torno da
magnólia que projetava uma sombra compacta e úmida sobre as escadas de
pedra-sabão. Betinho deslizava na pista e maldosamente abalroava os menos
hábeis. Lá embaixo, depois do largo, as sombras do crepúsculo começavam a
envolver os telhados baixos, encardidos.
— Vem — disse Betinho, quando cruzou com Francisco.
Pouco adiante, Débora já os esperava. Juntos, os três
procuravam não tropeçar na emenda das lajes, mais altas, mais baixas, ásperas
ou lascadas. Betinho ia à frente, puxava Débora pela mão. Olhos fixos no chão,
Débora erguia os pés como se saltasse obstáculos e lançava um olhar suplicante
a Francisco, que acompanhava timidamente Betinho. O cemitério já se entrevia
por trás do gradil.
— Vem — disse Betinho, petulante.
— Onde você está me levando? — perguntou Francisco.
— Medroso — disse Betinho.
Até ali atrás da igreja chegavam os ecos dos patinadores no
adro. Débora olhou para trás: ninguém pela redondeza. Um movimento em falso,
deitou-a de comprido no chão.
Prolongou a queda, como se esperasse auxílio de alguém.
Indeciso, Francisco não a socorreu.
— Betinho — chamou Francisco, para significar que não ia mais
adiante.
— Tirem os patins — disse Betinho.
Os três ao mesmo tempo desabotoaram as fivelas dos patins e
os descalçaram. Era bom pisar com os pés dormentes em terra firme. Como se
tivessem vindo de águas revoltas, em movimento.
— O cadeado está trancado — disse Francisco.
— A gente pula — disse Betinho, e atirou os patins por cima
das grades do portão.
— Olha o vigário — disse Francisco.
— Onde? — Betinho, voltou-se de olhos vivos, assustados.
— Pode aparecer — resmungou Francisco.
— Medroso — e Betinho começou a subir no portão, mãos e pés
nas vigas de ferro.
— Agora vem você — disse a Débora e lhe estendeu a mão
direita.
— Empurra a Dé — disse Betinho, agora em posição segura.
Francisco agarrou os tornozelos da menina sem saber o que lhe
competia.
— Assim não — disse Betinho.
Francisco subiu-lhe as mãos pelas pernas, ajudou-a a galgar a
primeira etapa, mãos nos seus pés. Depois subiu e alcançou a coluna. Evitava as
hastes pontudas. Francisco e Débora acompanhavam-lhe os passos — não havia
outro caminho. Em cima do portão, letras de ferro, bordadas, estava escrito:
"Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris". Os meninos
desciam pelo outro lado, dentro do cemitério.
— Depressa — e Betinho escondeu-se entre o muro e um túmulo.
Francisco apertou a mão de Débora, que era fria, e estendeu a
vista de um lado e outro, até lá em cima, no ossário e na parede de engavetar
defuntos. Já não se ouvia a meninada no adro. Os patinadores deviam ter se
recolhido. Em pouco era a noite. A treva cobriria o cemitério, envolveria a
igreja. Uma densa mancha engoliria a copa da magnólia. Em casa o esperavam para
jantar, talvez dessem por sua falta e fossem buscá-lo — pensou Francisco.
— Está ficando tarde — disse.
— A gente volta já.
Betinho puxava Débora, que ia nas pontas dos pés, pesada como
quem se recusa. Francisco viu Betinho enlaçar a menina e ambos desapareceram
por trás de um mausoléu com um anjo de asas de bronze, a mão parada no ar. Francisco
olhou os fundos da igreja — quieta e solene como o morro. Voltou-se depois para
os túmulos que se sucediam encosta acima. Hora indecisa, entre a noite e o dia.
No silêncio, tudo tinha parado. A cidade e o mundo, esquecidos, não
ultrapassavam as fronteiras do cemitério. Francisco queria apoiar-se em alguma
coisa, mas não ousou encostar-se no túmulo mais próximo. O Cristo de bronze
pregado numa cruz de mármore, os companheiros, a vida, o mundo — tudo era
absurdo e longe. O arrulhar dos pombos no beiral da igreja queria dizer-lhe
qualquer coisa que ele não entendia.
— Francisco.
A cara de Betinho por trás do mausoléu. Francisco foi andando
pela aléia entre as sepulturas, até aproximar-se do companheiro, que abotoava
os suspensórios por baixo da blusa. Por um momento, estranhou a ausência de
Débora e logo a viu deitada, puxando o vestido que deixava à mostra os joelhos.
— Vai — disse Betinho. Está escurecendo. Francisco
aproximou-se da menina, tocou-lhe os pés que as alpercatas mal escondiam. Não
sabia o que fazer. Olhou Betinho como se pedisse instruções.
— Anda — disse Betinho.
Francisco ajoelhou-se aos pés de Débora e viu Betinho de novo
a espreitá-lo.
— Vai embora — e bateu a mão com impaciência.
Betinho sumiu. De joelhos, Francisco apoiou-se com as mãos no
chão. O cordão, as medalhas. Débora permanecia passiva, corno a vítima prestes
a ser imolada. Estendendo-se de comprido, Francisco sentiu o corpo morno que
inerme o recebia. Era como um ritual de que ambos se tinham esquecido.
Recortado contra o céu escuro, Débora via parte do anjo de bronze, o braço
erguido em sinal de advertência. As mãos no chão, Francisco levantou-se a meio
corpo. Débora tentou cobrir o rosto, mas deixou à mostra os olhos que eram
cinzentos, quase opacos.
— Está chorando? — perguntou Francisco e passou-lhe a mão
pelos cabelos, puxou-lhe os anéis até os ombros.
— Anda — disse Débora.
Francisco não precisou responder, porque Betinho aparecia
naquele momento:
— Pronto?
Débora ergueu-se e sacudiu a saia como se quisesse limpá-la.
Betinho estava grimpado no alto da pilastra.
— Espera sua irmã — disse Francisco, a voz tão alta que o
assustou.
Betinho escorregou para o outro lado, sem fazer caso. Um
patim em cada mão, alguns passos adiante voltou-se:
— Ela sabe o caminho.
— Dé — disse Francisco. — Eu te levo.
E saltaram o portão. O vestido de Débora rasgou-se numa
haste. Cada qual pegou o seu par de patins. Junto à parede de engavetar
defuntos, lá em cima, acendeu-se uma lâmpada vermelha, que anunciava a noite.
Em cima do mausoléu, imóvel, o anjo dava adeus num gesto de bronze.
— Tarde demais — e Débora ergueu os olhos para o céu sem
estrelas.
— Sua mãe zanga? — perguntou Francisco.
De mãos dadas, de costas para o cemitério, ganharam a calçada
que contornava a igreja. No jardim, um padre passeava para lá e para cá, um
livro aberto nas mãos. Francisco sussurrou qualquer coisa que Débora não
entendeu. Voltaram ambos pelo mesmo caminho, passaram diante do gradil do
cemitério e contornaram a igreja pelo outro lado. Confundido agora com as
sombras da noite, o silêncio a tudo emprestava proporções monumentais. O adro
imenso, desabrigado. O vento na copa da magnólia iluminava as folhas de um lado
como se tivessem luz própria.
A escadaria, os degraus gastos, familiares, caminho da missa,
da novena, da bênção e do mês de maio. Chegaram ao largo e apertaram o passo
até a esquina da mangueira. A casa no alinhamento tinha janelas baixas. Na
ponta dos pés como uma boneca, Débora abriu a porta e, lá dentro, ouviu a voz
de Betinho entre vozes adultas, indiferentes.
— Está na mesa — disse a mãe.
— Onde está Dé? — perguntou o pai.
— E vem aí — disse Betinho, fungando.
Sozinho na rua, Francisco ouviu o sino que começou a dobrar e
despejava sobre a cidade uma onda de sons, a noite grave e triste que ia
começar. Na rua parada, as casas paradas, as árvores paradas. O sino o
perseguia, ia à frente e vinha atrás. Francisco deixou cair os patins e não
voltou para apanhá-los. Fugia como se o cemitério tivesse se despenhado rua
abaixo, no seu encalço.
Abriu o portão de casa, atravessou o jardim, parou no
alpendre que uma trepadeira atulhava. A dama-da-noite impregnava o ar de um
perfume sereno, pacificador. Uma luz estava acesa lá dentro. Limpou com
insistência os pés no capacho, como se chegasse da chuva. Enxugou seu rosto
molhado de lágrimas na fralda da camisa.
O sino tinha parado de tocar, mas alguma coisa vibrava no ar,
sobre a cidade que acabava de acender as suas luzes para dormir.
(O texto acima foi
extraído do livro "O Boca do Inferno", Companhia das Letras — São
Paulo, 1998, pág. 67.)
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