Irene, a neta predileta, aproveitou que estava a sós em casa com o
Velho Marinheiro, nosso Lobo do Mar, e resolveu puxar dois dedos de prosa.
Apesar das confusões recentes, ele parecia estar tranquilo. O dedão do pé
estava em paz; o bicho de pé imaginário, também. Bom sinal.
-- Vovô: não vou mentir. Sempre achei que o senhor era o encrenqueiro
da família. Não que não seja. Às vezes, me perguntava de onde minha avó tirava
tanta paciência. Hoje, vejo que vovó também não é flor que se cheire. Anda
insuportável. A gente não pode dizer nada que ela implica, diz que a gente não
fala: berra. Parece que está com os nervos à flor da pele.
Nosso Lobo do Mar fitou o infinito, como se procurasse um porto
seguro, uma ilha repleta de Iracema peladas. Esboçou um sorriso de sabedoria. E
foi direto ao assunto:
-- A culpa é nossa, Irene. Nossa desgraça começou quando você e sua
mãe a levaram nesse médico de ouvidos. Mafalda sempre foi meio surda, mas nunca
gostou de usar aparelhos, e os que ela usou eram chinfrins. Achava besteira
gastar dinheiro com isso. Há quarenta anos, eu grito, para que ela me ouça. Não
sei como ainda não perdi a voz. Agora, tudo mudou. Dia desses, ela me disse que
eu pigarreava alto demais. Mas a última pigarreada que dei foi na esquina de
baixo, quando voltava da padaria. Esse amplificador é muito forte.
-- E o que nós vamos fazer agora? – quis saber a neta.
-- Não dá para diminuir o som desse treco?
-- Já está no mínimo, vovô.
-- O quê? Ainda dá pra aumentar o volume? Que Deus nos livre e guarde!
E o Velho Marinheiro voltou a buscar com os olhos miúdos o infinito. Coçou
o dedão por alguns minutos e disparou:
-- É mais fácil Mafalda voltar ao seu estado natural, de ouvidos
curtos, do que eu reaprender a falar baixo. Vou dar um sumiço na engenhoca. Ela
perde tudo mesmo, vai achar que esqueceu em algum lugar. Depois, você vai e
compra outro, mas igual ao antigo, de pouca potência.
-- Será que dá certo?
-- Vamos tentar. Faço tudo em nome da paz doméstica. E de meu amor por
Mafalda. (setembro/2013)
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