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METAS
DE VIDA
As
pessoas querem brilhar. Confundem vocação
com
a vontade de aparecer
Por
Walcyr Carrasco
Revista
Época Digital
16/01/2018
- 08h00
Dou ossinhos de petshop à minha cachorra
Luna. Ela enterra. Depois desenterra. Simples assim. Se uma pomba dá mole, ela
come, sem problemas de consciência. Luna é husky, e como tal, caçadora. Não
enfrenta nenhum movimento pelos direitos dos pombos. Simplesmente pula em cima
e depois engole até as penas. Gosta quando coço suas orelhas. Se chega uma
visita que ela adora, simplesmente deita, patas para cima, expondo as partes
íntimas. Que é exatamente o que eu gostaria de fazer, dependendo da visita. Mas
sento educadamente e ofereço um café. Luna sábia. Eu a sustento. Ela nem mesmo
tem a preocupação de ganhar a vida.
Desde que eu me conheço por gente, aprendi
que devia estudar, me profissionalizar. E subir na vida. E formar um patrimônio.
A sabedoria popular diz que no caixão nada se leva. Mas o magnífico mundo
criado pelos humanos não leva essa sábia advertência em consideração. Quando eu
era criança, ouvia ser preciso me preparar para a velhice. Sem condições de
trabalhar, eu teria de sobreviver do dinheirinho amealhado durante a vida.
Aposentadoria era uma palavra doce. Descobri que não ao visitar uma antiga
professora. Com os índices de correção do governo, ela, mais de 80 anos, não
recebe o suficiente para pagar a faxineira duas vezes por semana. Do que
adiantou o sacrifício de mais de 40 horas semanais?
O grande objetivo da vida, portanto, não
seria viver um amor, escalar montanhas ou plantar árvores. Mas formar o tal
patrimônio. Lembro-me de uma antiga história, não me recordo onde li, de um
pescador que vivia à margem de um rio. Chegou um homem da cidade, ofereceu uma
fortuna pelo terreno. O pescador perguntou por que deveria vender.
– Com esse dinheiro o senhor poderá viver
tranquilamente, à beira de um rio, pescando como gosta – explicou o comprador.
– Mas eu já vivo assim. Não preciso vender
coisa nenhuma.
E o pescador continuou tranquilo em sua
terrinha. Vendemos nossos sonhos, desejos, sentimentos mais íntimos, para
termos a tal terrinha à beira de um lago. Mas... já não temos tudo isso? Eu
assisto a esse processo, dolorosamente, no que toca à expressão artística. Já
conheci muito candidato a escritor. Houve um tempo em que a questão da
qualidade se sobrepunha a qualquer outra. Escrever era um mergulho íntimo. Mas
a visão americana, que privilegia o sucesso, ganhou o mercado. Um livro é bom
dependendo de quantos exemplares vendeu. É cada porcaria que ganha espaço na
imprensa! Isso também vale para cantores, músicas, peças de teatro... todas
formas de expressão artística. Tenho consciência de que vivo cercado de obras
rasas. Isso ainda é uma sorte, fazer sucesso. Conheço inúmeras pessoas que, ao
escolherem sua profissão, optaram pela mais segura. Depois, querem expressar
sua veia artística. Acho maravilhoso alguém dar aulas de pintura em um asilo,
criar grupos de teatro nas escolas, clubes, cantar com os amigos nas festas.
Mas, novamente, as pessoas querem brilhar. Confundem vocação com a vontade de
aparecer.
Um grande músico pode ser pobre e
desconhecido. Repercutirá no mundo cultural e artístico. Mas ninguém se
conforma com isso. Abandonam-se vocações, sede de viver e até amores. Mesmo não
expressa em voz alta, talvez a frase que grita mais intensamente no íntimo de
cada pessoa seja simplesmente:
– Eu me vendi.
Falei da área artística porque conheço mais
de perto, convivo com sede de sucesso e riqueza em meu cotidiano. Mas estou
farto de conhecer financistas, médicos, engenheiros idem. Poucos são felizes em
ser quem realmente são. Trocam seus anseios, seu desejo de vida por um carro
para se exibir, uma casa que não usam inteiramente, closets imensos, com roupas
que não repetem. Existe algo mais ridículo que o caso do político escondendo
uma fortuna em malas num apartamento? O dinheiro não servia para nada, a não
ser para ser olhado. Como tantas contas em paraísos fiscais das quais os
corruptos e traficantes não podem lançar mão, para não serem descobertos. É o
patrimônio contemplado, que se torna apenas um símbolo. Sem palavras. Ainda
estamos no início do ano. Não é questão de pensar em promessas como perder a
barriga ou aprender um novo idioma. A grande questão geral da vida, essa sim
merece atenção: quais são minhas metas? E afinal, o que levo no caixão?
Só se leva a vida que a gente viveu.
Contemplo a sabedoria da minha cachorra, que nem pensa nisso. Só vive. Eu
queria ser um cachorro.
***
WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da
revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
***
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