Ilustração: Nidhi Chanani |
GENTE
FELIZ ME IRRITA
Impossível
conviver com a alegria carnavalesca.
Resolvi
fugir de tanta comemoração
POR WALCYR
CARRASCO
Época
Digital
13/02/2018
– 8h
Ahhh, eu sei que muitas almas generosas ficam
escandalizadas quando digo uma coisa dessas. Mas é fato. Não há nada mais
irritante, e até tenebroso, do que gente feliz. Vá a uma churrascaria em almoço
de domingo. Tem coisa pior? É contemplar o espetáculo de famílias rindo,
gritando entre si, crianças chorando, mães nervosas, mas nem por isso menos
felizes. Enquanto eu e um ou dois amigos nos refugiamos num canto, tentando
conversar. Aí alguém canta "Parabéns", o garçom vem com um bolo, a
outra mesa comemora. E algum de nós se lembra do último aniversário, que caiu
na véspera de um feriado prolongado, e ninguém foi à festa. Algo assim. Soube
que a taxa de suicídio no Natal e no Ano-Novo aumenta. Óbvio. Alguma alma
solitária está em seu apartamento, ouvindo o tilintar de copos no apartamento
do lado. A troca de presentes com gritinhos. Chega um momento, não resiste
mais. Abre a janela e se atira. Já passei por isso há muitos anos. Um Natal
solitário, depois da morte de meus pais. Inicialmente estava muito bem. Até
comprei uma roupa que queria, de presente para mim mesmo. Mas e à noite, com a
casa do lado toda iluminada, risos infantis? Só não me atirei porque morava em
casa térrea. O máximo seria quebrar o nariz no cimento. A partir daí, cultivei
outras relações familiares e tenho ótimos natais com minhas sobrinhas. Não se
preocupem com meu próximo Natal.
Mas estou escrevendo uma novela, O outro lado
do paraíso. Um capítulo por dia. Eu estava no Rio de Janeiro. Pretendia passar
pelo menos uma noite na Sapucaí, assistindo ao desfile. Já me irritei só de
pensar nisso. É numa data dessas que minha barriga tira a vontade de botar
fantasia. Ou de sair num bloco, como um respeitável advogado amigo meu fez, de
sunga e gravatinha-borboleta. Mas ele comparece à academia diariamente. Minha
resolução de permanecer no Rio desapareceu em um único fim de semana. Das
primeiras horas da manhã até a noite, um bloco desabrochou em frente a meu
apartamento. Ouvi samba, pagode. Sem parar. Eu escrevendo. Adoro escrever. Mas
não com uma multidão enchendo a rua, feliz, feliz! Gente que veio de todos os
cantos do país e até do mundo, sambando, arrancando a roupa, se conhecendo e
partindo pras finalizações. Eu, ouvindo. E até a madrugada, na praia, um outro
bloco, também de gente feliz.
Dois amigos vêm do exterior. Sugeriu-se que
ficassem em meu apartamento. Expliquei que não. Impossível conviver com a
alegria carnavalesca de quem veio passar férias, tendo de trabalhar. Imaginei
os dois chegando às 3, 4 da manhã, sem nem conseguir andar em linha reta. E eu,
ainda no computador. Resolvi fugir de tanta comemoração. Um amigo falou de um
retiro, aonde pretende ir.
Lembrei-me de que no meu tempo de adolescente
ia, sim, a retiros carnavalescos. O mais inesquecível foi um em que nós, os
garotos, dormimos em uma capela antiga onde havia morcegos. Silêncio. Pensei em
ir também. Escreveria no silêncio da madrugada. Meu amigo explicou. O retiro
seria próximo ao Rio de Janeiro.
– O bom é que fazem iniciação ao ayahuasca.
– Ahn? Que tipo de retiro é esse?
– Espiritual. A gente vai entrar em outros
mundos, atingir outra dimensão.
Quatro ou cinco dias com ayahuasca! A bebida,
no passado, fez parte de rituais xamânicos. Hoje também faz, mas os xamãs são
mais modernos. Eu suportaria passar esse tempo com todo mundo sorrindo,
viajando, viajando... e eu, terráqueo, atolado no mundo real? Tantos sorrisos
me dariam pânico. Resolvi me esconder em São Paulo. Até o fim do Carnaval, o
que se torna cada vez mais uma data desconhecida. No ano passado, logo após a
Quarta-Feira de Cinzas, tinha bloco. De despedida. No sábado o desfile das
campeãs. Aí, surgem outros blocos porque a alegria não acabou. Dá-lhe Carnaval!
Não tenho uma alma generosa que se derrete
enquanto noivos choram no altar e saem para uma lua de mel em alguma ilha
exótica. Eu queria, isso sim, ir para a tal ilha. Bem acompanhado. E amigos que
saem para festas às 11 da noite e voltam às 9 da manhã? Ou às 14, porque agora
tem o after e o pós-after? Tanta energia irrita. Pronto, falei.
Sou egoísta? Atire a primeira pedra se puder.
Antes faça uma experiência. Vá sozinho e veja um bloco de Carnaval. Ontem vi um
com todos, moças e rapazes, de saias verdes e asas de anjo. Assista anônimo
enquanto pulam, bebem, se divertem.
Consulte seu coração. Foi a melhor
experiência da sua vida? Seja sincero. Gente feliz é irritante.
WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da
revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
E o Velho Marinheiro explicou a Mafalda as razões de seu "retiro" espiritual: "Após muita reflexão, cheguei à conclusão de que a gula é a mãe de quase todos os pecados capitais e de muitos veniais também..." Por Orlando Silveira
https://orlandosilveira1956.blogspot.com/2018/08/pecados-capitais.html#comment-form
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