segunda-feira, 13 de agosto de 2018

CRÔNICA: WALCYR CARRASCO

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Imagem: Reprodução WhatsApp

ODEIO CORRETOR AUTOMÁTICO

Preciso estar atento a cada letra digitada.
Qualquer distração pode estragar uma amizade

Por Walcyr Carrasco
Época Digital
06/02/2018 - 08h00

Todas vezes em que compro um novo computador, na instalação, imploro:

– Tire o corretor automático e as atualizações.

Adianta? É preciso entrar no cérebro da máquina para arrancar o corretor. As atualizações, nem se fala. É impossível sumir com elas. Pior: seu método de marketing é o terror. Recebo avisos do tipo: “Este computador está em risco. Atualize e reinicie”. Pior. Vou iniciar o trabalho. Surge na tela o aviso: “Este computador está sendo atualizado. Não desligue”. Óbvio, não quero desligar. Quero atirar pela janela. Tenho e-mails urgentes a responder. Trabalhos. Mas aguardo enquanto o programa roda, roda, roda. Em uma dessas atualizações, de repente meu computador ficou com o Windows 10. Que me desculpem, mas é... Gostava do 7. Agora não consigo mais nem abrir uma pasta nova. Mas eu não havia entendido que mudariam o programa. Parecia uma atualização urgentíssima. Fora as de segurança, também sempre ameaçadoras. Uso o computador para escrever. Tenho um programa próprio para fazer roteiros. Impossível entender por que, de repente, ele se rebela. Em meus textos, com frequência há personagens caipiras, que falam errado. Vem o corretor e transforma o texto em algo absolutamente inexplicável. No celular é horrível. Às vezes, torna-se vergonhoso. Outro dia trocava WhatsApp com um conhecido.

– Estou impaciente – escrevi, me referindo a um possível trabalho.

O corretor rapidamente “corrigiu”. Não percebi. E lá se foi a mensagem:

– Estou impotente.

Depois de um silêncio constrangido, a resposta:

– Já tentou as pílulas?

O corretor atacou. Recebi:

– Já tentou as vírgulas?

No susto ele deve ter trocado “p” por “v” e deu nisso. Reli, percebi a troca de palavras. Tentei explicar.

– Eu não quis dizer que estou impotente.

Lógico, o corretor agiu. E foi:

– Eu não quis dizer que estou indecente.

Solidário, meu amigo quis me fortalecer. Respondeu, como descobri depois:

– Tem jeito de solucionar o problema.

E veio, após o corretor:

– Tem peito de selecionar o esquema.

– Eu tenho de ter peito pra quê? O que devo selecionar, que esquema? – assustei-me.

– Você aproveite bem o sistema, que pro peito tem jeito.

– Não quis dizer que estou impotente, mas impaciente.

– Imagino que quem está impaciente é sua namorada.

– Não tem segredo nenhum, a culpa é do corredor.

Eu queria dizer corretor, mas...

– Tem algum corredor no meio da história?

– Não disse corredor, mas condutor.

– Condutor de ônibus? Metrô? Não sabia dessa história, mas sou discreto, não se preocupe.

– CORRETOR! CORRETOR! CORRETOR AUTOMÁTICO!

– Sei, sei...

Em toda editora de livros, revistas, jornais, os revisores têm importância vital. Sempre tive vontade de esganá-los, um por um. Ocorre que gosto de escrever no coloquial, usando “pra”, por exemplo. Ou contorcendo as frases para tirar os “lhe”. Revisores caçam “pra” e “lhe” com a fúria de inquisidores atrás de bruxas. Assim, se eu boto um garoto de 9 anos dizendo:

– Vou pra casa do meu amigo levar um presente pra ele.

Ferozmente, o revisor corrige:

– Vou para a casa de meu amigo levar-lhe um presente.

Alguém já viu um menino de 9 anos falar assim? Não há argumento para convencer revisores do contrário. Mas o corretor automático é pior. Não é possível ligar e argumentar:

– Senhor corretor automático, eu não quis dizer que caímos na lama, mas, sim, na cama.

Há uma boa diferença entre cair na lama ou na cama, concordam? O corretor automático não tem olhos nem ouvidos. Corrige, e tenho de estar atento a cada palavra de cada mensagem. Um instante de distração, uma letra mal digitada e se digo “você estava muito elegante”, sai “estava um purgante”. O que era amizade se transforma em ódio.


Eu espero que em um futuro próximo as empresas de informática e de celulares percebam que há um grande número de pessoas desejosas de simplicidade. Eu queria um computador, como tantos que já tive, em que simplesmente pudesse anular as atualizações automáticas. Conseguir que o corretor me deixe escrever como as pessoas falam, e não em um português castiço. Ao contrário, cada vez mais sou obrigado a enfrentar máquinas sofisticadas. Não duvido que o próximo modelo de celular se transforme até em asa-delta. Mas eu só quero falar, trocar mensagens, bem simples, sem correr o risco de perder amigos. Mesmo porque agora a turma anda comentando que estou impotente. E não adianta argumentar que a culpa é do corretor automático.

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WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.



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