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O Velho Marinheiro e Ananias aproveitaram a ausência dos freqüentadores
barulhentos para colocar a prosa em dia. Os dois amigos trocaram ideias sobre
os mais variados assuntos – de política a futebol, passando pela crise hídrica,
disparada da inflação, as curvas da Deolinda e as expectativas em relação ao desempenho
da escola de samba do bairro. Além deles, apenas Carneiro – o dono do boteco, sempre
a conferir contas a pagar e o caderno de fiados. Operação que fecha invariavelmente
no vermelho.
Ananias, sem querer, fez um comentário e mudou o rumo da conversa:
-- O senhor viu quem desviou de caminho, para não passar por aqui?
-- Não. Se eu estou de costas para a rua, como poderia ver?
-- O Toninho Veludo. Estava junto com o Jacó do Pandeiro. Faz tempo
que eles não vêm aqui. Será que se chatearam com alguma coisa?
-- Qual o quê! O veado e o tocador de pandeiro são dois pilantras.
Eles fogem porque devem para o pobre do Carneiro.
-- Mas dia desses eles estavam os dois, mais o Chico Gordo, tomando
umas no boteco da rua debaixo.
-- Chico Gordo é outro safado, devedor contumaz. Estão sujos aqui?
Vão fazer dívida em outro lugar. Ficaram sujos lá? Eles procuram nova vítima. É
assim que vivem esses vagabundos. Pagam à vista nos primeiros dias, depois
partem para a lambança. Quantos outros não têm aparecido por aqui, mas podem
ser encontrados nos botecos da redondeza? Puxe pela memória.
-- Velho Marinheiro: não posso acreditar numa coisa dessas, eles
devem estar sofrendo os efeitos da crise, sei lá.
-- Ananias: desde quando cachaça é prioridade? Na semana passada, eu
vi Marreta negar ao neto um daqueles doces ordinários que Carneiro tem na
vitrine. Disse ao menino que estava sem dinheiro. Mas ele continuou bebendo e
devendo... Isso não é de hoje, não.
O Velho Marinheiro fez sinal para que Carneiro viesse à mesa, pediu
cerveja e dois aperitivos e emendou a pergunta:
-- Carneiro: não precisa dizer valores, mas Toninho Veludo, Jacó do
Pandeiro e Chico Gordo devem para você?
-- Devem e devem muito, há bastante tempo. Se fossem só eles...
-- Não entendo. Carneiro: você continua vendendo fiado para essa
gente?
-- Ananias: para não fazer desgraça, a gente se ilude, faz de que
conta que acredita que um dia eles pagarão. Mas esse dia nunca chega. A desgraça é que não sei fazer mais nada na vida, além de vender cachaça. (OS)