A NEGRA SAÚNA
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A negra Saúna era agregada na casa do capitão Batista. Suja e
maltrapilha, tinha os pés rachados e os cabelos desgrenhados como um Macunaíma
de subúrbio. Fazia o trabalho menos nobre daquela residência, como alimentar e
banhar os cachorros, lavar os banheiros e cuidar dos chiqueiros dos porcos que
havia no fundo do quintal. Aliás, era tratada pela família quase como se fosse
um deles: dormia no chão, em um cantinho da cozinha, aos pés do fogão. Era a
última a dormir e a primeira a levantar quando o sol raiava.
Um dia, antes do sol nascer, Saúna reuniu os seus trapinhos e fugiu
pela porta da cozinha. Sumiu para nunca mais ser vista. A humilhação era grande
demais, mesmo para ela que nunca fora ninguém e nunca tivera nada na vida. A
matriarca dona da casa, esposa do capitão Batista, durante dias reclamou da
falta de consideração de Saúna, que ali, naquela casa, sempre fora tratada como
uma pessoa da família e agora a deixava na mão sem nenhum aviso prévio.
Ingratidão, isso sim! A retribuição era sempre essa.
Na verdade, Saúna não era negra, e sim uma cafuza, uma caboré, filha
de um índio bêbado com uma prostituta negra, trazida ainda menina pela família
do capitão Batista da cidade de Tacaimbó, no agreste pernambucano.
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Do mesmo modo, o capitão Batista não era capitão, e sim um velho cabo,
reformado como suboficial da Força Área Brasileira, um ex-combatente da 2ª
Guerra, que fizera patrulhas noturnas no litoral pernambucano. Mas, aquela
patente sempre o orgulhara e impunha respeito naquele bairro de classe média.
Durante dias, correu na rua da fábrica de redes o boato de que Saúna
teria fugido com o filho mais velho do verdureiro. Mas, poucas pessoas
acreditaram nisso, haja vista a feiura da negra e a sua sujeira.
Na verdade, o fato nunca foi devidamente esclarecido e, para as
pessoas daquela comunidade, Saúna terminou mesmo por se transformar no símbolo
da ingratidão.
Para mim, tantos anos depois, a negra teria mesmo era fugido da
escravidão disfarçada e consentida que lhe fora imposta por aquela família.
Mais do que Macunaíma, sempre me lembrara a figura da escrava Bertoleza,
personagem do romance O Cortiço, de Aluizio de Azevedo, que se suicida ao
descobrir que fora traída por João Romão, o homem que amava. Na vida real, a
saída de Saúna foi muito mais esperta e honrosa.
Recife, setembro 2014
O PAGADOR DE PROMESSA
Juazeiro do Norte/CE, 1993
Fotografia de Clóvis Campêlo

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