QUEM CANTA OS SEUS MALES
ESPANTA?
Faz tempo isso.
Encontrei o amigo na Ponte da Boa Vista, no centro do Recife, debaixo da maior
chuva. Cantava e dançava na rua. Estava feliz. E como sempre foi muito
performático, tentava demonstrar isso a todos os transeuntes.
O motivo de tanta
felicidade? Conseguirá, finalmente, seduzir a mulher pela qual estava
apaixonado. Achava que a empreitada valia uma demonstração pública de
maluquices. O povo olhava admirado e, é claro, sem entender muita a coisa. Eu
mesmo imaginei que houvesse enlouquecido, até que me explicasse o fato. Mesmo
assim, achei que era muita atitude para pouco resultado. Como pode se iludir um
homem apaixonado!
O tempo passou e
mostrou que eu tinha razão. Depois de dez anos e dois filhos, separaram-se. Ela
gostava de outro. Sempre gostara e ele, na sua paixão desvairada, não
conseguira perceber isso. Cada um seguiu o seu caminhar. A vida, camaradas,
sempre insiste em prosseguir.
Para mim, cantar na
chuva sempre foi coisa de americanos. E ele, o meu amigo apaixonado, não se
parecia nem um pouco com o Gene Kelly. Talvez, visualmente, estivesse mais para
Malcolm Mcdowell, que interpretou o vilão sádico de Laranja Mecânica, cantando
a mesma música, numa sequência em que espanca um homem e estrupa a sua mulher.
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CLÓVIS CAMPÊLO |
Mas, afinal, cada um,
canta onde se sente mais à vontade para tal. Dona Tereza, minha mãe, por
exemplo, adorava cantar na cozinha, enquanto preparava o almoço. Catava o
feijão interpretando Noel Rosa (“Nosso amor que eu não esqueço...”) e batia os
bifes com Maysa Matarazzo (“O meu mundo caiu...”). Nos dias em que brigava com
o meu pai, desafogava a raiva caprichando nas porradas e amaciando a carne.
Hoje, tenho a clara percepção de que esses foram os melhores e mais macios
bifes que eu comi na minha vida.
Cantar, cantava também
embriagado o velho Manoel, homem de cor apaixonado por dona Lourdes, mulher
branca de peitos fartos e lhe incendiar a imaginação: “Tu é divina e graciosa,
estátua majestosa do amor, por Deus esculturada...”. Ela, com seus óculos
escuros de madona experiente, fingia não perceber que a canção lhe era
destinada. E aquele canto ao mesmo tempo alegre e nostálgico do cantor
apaixonado, rasgava no Pina as noites quentes de verão. Houve um tempo em que
Manoel, lanterneiro de mão cheia, era o seu mantenedor. Ganhara muito dinheiro
com os americanos na ocupação da Segunda Guerra Mundial.
A pensão de dona
Lourdes (estritamente familiar, faça-me o favor!), ficava próxima ao Cassino
Americano, onde os garbos soldados de Tio Sam se divertiam. Ali, em noites de
luar, quando a musicalidade do mar se fazia notar com mais esplendor, o velho
negro dera provas incontestáveis do seu amor pela matrona.
Com o fim da guerra, no
entanto, não encontrara a paz o seu coração. Dona Lourdes apaixonara-se por um
velho taifeiro americano que resolvera dar baixa da marinha ianque e viver o
resto dos seus dias contemplando, ao seu lado, a magia do mar do Pina.
Só restara ao poeta
apaixonado, noite após noite dedilhar ao violão o seu canto plangente: “Oh
linda imagem de mulher que me seduz...”
Recife, 2014