segunda-feira, 20 de agosto de 2018

CRÔNICA: WALCYR CARRASCO

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Ilustração: Nidhi Chanani

GENTE FELIZ ME IRRITA

Impossível conviver com a alegria carnavalesca.
Resolvi fugir de tanta comemoração

POR WALCYR CARRASCO
Época Digital
13/02/2018 – 8h

Ahhh, eu sei que muitas almas generosas ficam escandalizadas quando digo uma coisa dessas. Mas é fato. Não há nada mais irritante, e até tenebroso, do que gente feliz. Vá a uma churrascaria em almoço de domingo. Tem coisa pior? É contemplar o espetáculo de famílias rindo, gritando entre si, crianças chorando, mães nervosas, mas nem por isso menos felizes. Enquanto eu e um ou dois amigos nos refugiamos num canto, tentando conversar. Aí alguém canta "Parabéns", o garçom vem com um bolo, a outra mesa comemora. E algum de nós se lembra do último aniversário, que caiu na véspera de um feriado prolongado, e ninguém foi à festa. Algo assim. Soube que a taxa de suicídio no Natal e no Ano-Novo aumenta. Óbvio. Alguma alma solitária está em seu apartamento, ouvindo o tilintar de copos no apartamento do lado. A troca de presentes com gritinhos. Chega um momento, não resiste mais. Abre a janela e se atira. Já passei por isso há muitos anos. Um Natal solitário, depois da morte de meus pais. Inicialmente estava muito bem. Até comprei uma roupa que queria, de presente para mim mesmo. Mas e à noite, com a casa do lado toda iluminada, risos infantis? Só não me atirei porque morava em casa térrea. O máximo seria quebrar o nariz no cimento. A partir daí, cultivei outras relações familiares e tenho ótimos natais com minhas sobrinhas. Não se preocupem com meu próximo Natal.

Mas estou escrevendo uma novela, O outro lado do paraíso. Um capítulo por dia. Eu estava no Rio de Janeiro. Pretendia passar pelo menos uma noite na Sapucaí, assistindo ao desfile. Já me irritei só de pensar nisso. É numa data dessas que minha barriga tira a vontade de botar fantasia. Ou de sair num bloco, como um respeitável advogado amigo meu fez, de sunga e gravatinha-borboleta. Mas ele comparece à academia diariamente. Minha resolução de permanecer no Rio desapareceu em um único fim de semana. Das primeiras horas da manhã até a noite, um bloco desabrochou em frente a meu apartamento. Ouvi samba, pagode. Sem parar. Eu escrevendo. Adoro escrever. Mas não com uma multidão enchendo a rua, feliz, feliz! Gente que veio de todos os cantos do país e até do mundo, sambando, arrancando a roupa, se conhecendo e partindo pras finalizações. Eu, ouvindo. E até a madrugada, na praia, um outro bloco, também de gente feliz.

Dois amigos vêm do exterior. Sugeriu-se que ficassem em meu apartamento. Expliquei que não. Impossível conviver com a alegria carnavalesca de quem veio passar férias, tendo de trabalhar. Imaginei os dois chegando às 3, 4 da manhã, sem nem conseguir andar em linha reta. E eu, ainda no computador. Resolvi fugir de tanta comemoração. Um amigo falou de um retiro, aonde pretende ir.

Lembrei-me de que no meu tempo de adolescente ia, sim, a retiros carnavalescos. O mais inesquecível foi um em que nós, os garotos, dormimos em uma capela antiga onde havia morcegos. Silêncio. Pensei em ir também. Escreveria no silêncio da madrugada. Meu amigo explicou. O retiro seria próximo ao Rio de Janeiro.

– O bom é que fazem iniciação ao ayahuasca.

– Ahn? Que tipo de retiro é esse?

– Espiritual. A gente vai entrar em outros mundos, atingir outra dimensão.

Quatro ou cinco dias com ayahuasca! A bebida, no passado, fez parte de rituais xamânicos. Hoje também faz, mas os xamãs são mais modernos. Eu suportaria passar esse tempo com todo mundo sorrindo, viajando, viajando... e eu, terráqueo, atolado no mundo real? Tantos sorrisos me dariam pânico. Resolvi me esconder em São Paulo. Até o fim do Carnaval, o que se torna cada vez mais uma data desconhecida. No ano passado, logo após a Quarta-Feira de Cinzas, tinha bloco. De despedida. No sábado o desfile das campeãs. Aí, surgem outros blocos porque a alegria não acabou. Dá-lhe Carnaval!

Não tenho uma alma generosa que se derrete enquanto noivos choram no altar e saem para uma lua de mel em alguma ilha exótica. Eu queria, isso sim, ir para a tal ilha. Bem acompanhado. E amigos que saem para festas às 11 da noite e voltam às 9 da manhã? Ou às 14, porque agora tem o after e o pós-after? Tanta energia irrita. Pronto, falei.

Sou egoísta? Atire a primeira pedra se puder. Antes faça uma experiência. Vá sozinho e veja um bloco de Carnaval. Ontem vi um com todos, moças e rapazes, de saias verdes e asas de anjo. Assista anônimo enquanto pulam, bebem, se divertem.

Consulte seu coração. Foi a melhor experiência da sua vida? Seja sincero. Gente feliz é irritante.

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WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.


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