O SUOR E A LÁGRIMA
Fazia calor no Rio, 40
graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o
mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos
Dumont, o vôo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no
Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares
avulsos.
Sentei-me naquela
espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o
trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo
e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo
italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo,
em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal
que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a
testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele
enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano,
executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a
todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu
cromo italiano.
E foi assim que a
testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu
sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos
tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar,
alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou
espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a
precisar nos restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira
com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos
assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão.
Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
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