WESLEY NÓOG - ENTREVISTA EXCLUSIVA
Socialmente engajado, o músico faz de sua arte um eficiente mecanismo de propagação das ideologias que acredita
Wesley Nóog procura unir sua arte com aquilo que acredita. A junção desses dois fatores faz do seu trabalho algo prazeroso não apenas para o artista, mas principalmente para aqueles que vem acompanhando seu trabalho nos últimos anos. Prestes a completar quinze anos de estrada, o cantor e compositor vem apresentando o álbum "Soul Assim", projeto autoral que ressalta toda a sonoridade que o influenciou e hoje o constitui artisticamente como foi possível tomar conhecimento a partir da pauta "NINGUÉM PASSA INCÓLUME AO SEU SOM", apresentada ao longo da semana passada. Neste bate-papo exclusivo gentilmente concedido por Nóog, ele conta-nos sobre seus planos para o futuro, a sua vivência ligada à Teologia da Libertação, suas iniciativas sociais e as agruras existentes na vida do artista independente. Vale a pena conferir! Boa leitura!
O fato de ter um envolvimento com a música desde muito jovem a partir de sua própria família foi fator determinante para que você enveredasse para a música ou você veio atinar para isso mais tarde após outras experiências?
Wesley Nóog - Meu desejo de cantar e virar um artista surgiu logo na infância. Fui influenciado pelos meus pais que cantavam no coral da Igreja Metodista. Como era tradição na minha família tocar um instrumento, comecei aos sete anos a frequentar aulas de trombone numa instituição religiosa da comunidade em São Miguel Paulista, onde morava, em São Paulo. Mas abandonei, pois não foi agradável. Depois, com oito anos, consegui meu primeiro violão e aprendi a tocar sozinho. Cresci embalado pelo ventos dos anos 80, quando a cultura brasileira passou a ocupar mais espaço na televisão e no rádio, demonstrando-se extremamente fértil e cheia de criatividade. Ouvia Roberto e Erasmo Carlos, Benito de Paula, Itamar Assumpção, Tim Maia, Cassiano, Hyldon, sempre presentes no programa Globo de Ouro da TV Globo. Todas essas estrelas inundaram minha alma e me fizeram sonhar, ao ponto de desejar estar cantando em um daqueles programas. Mas, mais perto de mim, ao lado da minha casa, havia uma família de músicos profissionais que faziam shows à noite. Como eles ensaivam na garagem, duas vezes por semana, sempre que possível, eu encostava para apreciar o repertório, pois a qualidade do som era muito boa e bem variada, com rock, samba, bolero, baião, reggae, entre outros. Aquilo chamava muito a minha atenção e tinha uma semelhança com os artistas da TV. Eu me realizava ali.
Como era este seu contato com a música em casa? O fato de ser de uma família religiosa o permitia ter a oportunidade e também ouvir música ditas como secular ou não?
WN - Meus pais cantavam no coral da paróquia, e, em casa, viviam treinando as notas melódicas, harmônicas e as letras para apresentarem nos cultos. Também tinham hábito de ouvir rádio e vitrola, onde tocavam Altemar Dutra, Lupicínio Rodrigues, Ângela Maria, Rosa Passos, entre outros. A comunidade evangélica era aberta a outras vertentes musicais e também era possível ouvir clássicos do rock, como Led Zeppelin, Black Sabbath, Elvis Presley, entre outros, assim como os mestres da Black Music, como Marvin Gaye, Aretha Franklin, Ray Charles, James Brown. Os vizinhos me emprestavam os LPs e eu ou os ouvia na minha casa ou na deles. Todas essas influências permitiram descobrir a música sem fronteira e classificação. O que importava era a qualidade e proposta da obra.
Ao entrar no seminário você tinha pretensões em seguir de fato a carreira eclesiástica ou você já nutria o desejo de seguir carreira artística?
WN - Desde criança já sabia que seria artista. O seminário protestante, em Coronel Fabriciano (MG), foi uma oportunidade para eu ter uma formação mais sólida, uma vez que a ciência teológica abrange vários ramos do conhecimento como a História, Sociologia, Filosofia, Música, Grego, Hebraico, Latim, Psicologia, Hermenêutica, exegese, oratória, entre outras. Funcionava num regime de internato. Os estudos eram muito puxados, com uma jornada de oito horas diárias: quatro pela manhã e quatro à noite. Dediquei-me com afinco, por ter consciência do investimento de meus pais na minha formação. Durante os 12 anos no seminário, além de estudar a teoria musical, havia aulas práticas que envolviam vários instrumentos, como bateria, baixo, guitarra, cavaquinho e piano. Nos fins de semana, a escola desenvolvia um projeto que circulava pelas praças da cidade, onde fiz minhas primeiras apresentações em grupo. Quando saí do seminário, cheguei a dar aula particular de Português e Música por quase dois anos, mas logo em seguida passei a me dedicar e a sobreviver só de música, com meus shows.
Ao longo destes anos reclusos você teve a oportunidade de vivenciar de perto alguns dos preceitos da Teologia da Libertação a partir de experiências que antecederam a sua carreira artística. Hoje algumas dessas ideias refletem-se em sua arte e ações. Você procurou trazer esses conceitos para aquilo que você faz ou foi algo que acabou surgindo de modo natural?
WN - As vivências ligadas à Teologia da Libertação eram embaladas por profundas reflexões a respeito de nós mesmos e da realidade cultural, socioeconômica deste mundo que se tornou globalizado e neoliberal. Acredito que a vivência sem reflexão é o mesmo que a plantação sem chuva e sol. Murcha, seca e morre. Entendo nesse processo que para mudar o mundo seria necessário mudar nós mesmos, pois o que nos cerca é reflexo do que pensamos. O corpo segue a mente como uma sombra. Prova disso, são os projetos que ajudamos a criar, como a Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia em São Paulo), a Teoria e a Prática Musical para Adolecentes e Jovens em Medida Socioeducativa na Fundação Casa, os saraus, Poesia no Ar, Chuva de livros, Corredor Cultural Mameluco Afro Brasileiro, entre outros.
São cinco álbuns lançados e 15 anos (a serem completados em abril) de estrada caracterizados a partir de uma grande autonomia artística e industrial. Não estar vinculado as grandes indústrias fonográficas, fazendo uma carreira de modo independente com certeza tem seus altos e baixos. Que balanço você faria de sua carreira? O que você destacaria como relevante nesse período?
WN - É uma luta diária, um desafio permanente e também uma grande paixão e um imenso prazer construir e seguir por essa estrada com cinco álbuns autônomos. Dois deles com um trabalho solo: "Mameluco Afro Brasileiro" (2010) e "Soul Assim" (2013). Não estar vinculado às grandes indústrias fonográficas é uma decisão pessoal. Isso não significa que tenha algo contra ou não queira o diálogo. A questão passa pela plataforma das propostas do mercado. Se houver propostas interessantes, estou aberto a conversar. Não quero me fechar, pois seria um contrassenso. Nossa música tem que chegar ao maior número de pessoas possível. Os altos e baixos da carreira estão presentes na vida de todo artista verdadeiro, aquele que tem compromisso e está a serviço de sua arte. Obviamente em graus diferentes, dependendo do tempo de carreira e experiência. Mesmo com inúmeros recursos tecnológicos hoje, como as redes sociais, entre outros, ainda é preciso pensar na carreira artística como quem planeja a construção de uma casa, iniciando pelo alicerce até chegar ao telhado, senão não dá caldo, fica sem consistência, não se sustenta. Não me importo com o tempo, pois entendo que ele é rei e para tudo existe um tempo em baixo sol; nada acontece fora do tempo. Fico feliz pela história escrita até aqui na música brasileira independente, amplamente exposta no Google. Foi escrita com a nossa própria mão, com muito orgulho e plena consciência de que, vivemos o presente criando futuro. Mas o que mais nos surpreendeu até aqui foi o resultado de downloads do quarto disco, Mameluco Afro Brasileiro, que chegou à casa de mais de um milhão de acessos, uma verdadeira façanha no atual cenário da música independente. Ao ponto de surgir um colecionador e arrematar os últimos exemplares da obra, que passou a ser vendida por R$ 50,00 cada no Mercado Livre. Esse álbum também me permitiu fazer uma longa viagem pela Europa, com vários shows e resultados extremamente positivos.
Os seus trabalhos são caracterizados por apresentarem uma marca bastante pessoal, em Soul assim não é diferente, pois você assina a maioria das faixas presentes perpassando pelos mais diversos ritmos e gêneros. Como se dá esse seu processo criativo?
WN - Aprendi com o tempo que não sou eu que tenho a música e sim ela que me tem. E a partir daí tudo muda... a gente já não é mais dono de si mesmo, apenas seu servo. As letras, os poemas, as melodias, as harmonias, os ritmos e gênero nascem naturalmente de dentro de mim, como se fossem pássaros que pousam em nosso quintal, atraídos por algum tipo de alimento ou até mesmo sem um motivo muito claro. É preciso sensibilidade e intuição para entender o que a deusa música, rainha das artes, quer da gente. Sei que música não é viagem, mas compromisso com a gente mesmo e os outros. A realidade onde estamos, as leituras, os estudos, as vivências e histórias do dia a dia são o que me movimenta e inspira a criar. Sou muito observador e curioso e quero que a minha música sirva para despertar a alegria e amenizar a dor das pessoas.
A efervescência do soul nacional se deu em especial ao final da década de 1960 e ao longo dos anos de 1970 quando vieram nomes como Cassiano, Hyldon e Tim Maia que acabaram tornando-se referência do gênero no país. Você vem de uma geração que bebeu da fonte desses nomes e hoje os representa de modo bastante substancial. Em sua opinião qual a maior dificuldade para o soul nacional voltar a ter a projeção de anos atrás?
WN - Realmente o Soul está cravado na minha origem e é a principal fonte onde fui buscar inspiração para o meu trabalho. É também filosofia e estilo de vida. A música, dentro da vertente do Samba Soul, é o nosso dia a dia, nossa vida, nosso amor e nossa paz. Para o gênero voltar a ter projeção à semelhança de anos atrás, considero um pouco complicado. O período do auge do Soul estava muito ligado às condições históricas vividas pelo Brasil naquela época, como o estágio de industrialização e o desenvolvimento do país, o que permitiu altos investimentos em entretenimento e diversão para a população. As novas tecnologias estavam engatinhando, mas a televisão e o rádio foram as ferramentas fundamentais para o alcance da massa trabalhadora, de certa forma, com custos baixos e pouco investimento. Atualmente as coisas são totalmente diferentes. O surgimento da internet e da cultura digital mudou tudo. Hoje é possível fazer um disco inteiro em casa, em um home estúdio, obviamente não se discute qualidade. As redes sociais são extremamente fortes na expansão da comunicação e o mundo parece que ficou pequeno. O Facebook, por exemplo, tem muita influência, mas é necessário pagar pelo serviço de expansão da informação nessa rede. Fora isso, há os famosos jabás, verba destinada à veiculação em rádios e tvs das músicas, e outros meios se proliferam alimentados pelo capital. Mesmo assim, entendo que o gênero pode ainda ganhar destaque e ocupar os grandes veículos de comunicação, partindo do pressuposto do investimento e da vontade política das elites. Mesmo que haja todas possibilidades aparentes, ainda é necessário muito trabalho de convencimento e negociação com o mercado. Isso não quer dizer que não seja possível construir esse novo momento, tanto que estou trabalhando firmemente para que isto ocorra.
Você faz um trabalho bastante relevante através do Corredor Cultural Mameluco Afro Brasileiro, mostrando que a arte é uma grande aliada às causas sociais. Você poderia contar um pouco como funciona este projeto?
WN - Não conseguimos imaginar um artista que não seja cidadão, que consiga compactuar com a mediocridade e não olhe à sua volta com uma visão holística, integral e profundo amor ao próximo. O Corredor Mameluco Afro Brasileiro é uma iniciativa social catalizadora das linguagens da arte, abrangendo o cinema, a música, o teatro, o grafite, as artes plásticas, a literatura, a poesia, o áudio visual, a dança. O papel desse projeto é promover a articulação, mobilizar e realizar ações que permitam as manifestações expressivas de cada tipo de arte na periferia e no centro, por seus próprios protagonistas. Trata-se de um evento com uma programação, que estende-se das 10hs às 22hs, com horários prefixados e destinados a cada linguagem, que tem seu espaço de manifestação reservado. O encerramento dessa agenda de atividades consiste num grande show, com nomes da música brasileira conhecidos ou não e participações especias de variados artistas.
Você busca para suas letras e canções expressar um pouco daquilo o que é a periferia, realidade esta que está aquém daquilo que muitas vezes o que detém o capital determina como relevante. Você acredita que esse tipo de engajamento acaba por muitas vezes estigmatizando de modo depreciativo o tipo de arte que você faz também?
WN - Nosso trabalho é holístico, integral, está além da periferia e do centro. Na periferia ou no centro, as pessoas sentem angústia, dor, fome, sede, medo do futuro, tristeza e outros sentimentos e necessidades. Trabalhamos com o gênero humano da periferia ou do centro. Todos eles têm um coração que bate e busca a felicidade. Os termos centro e periferia estão muito deturpados pela atual visão sociológica, sobrecarregada de superficialidade e preconceitos. A palavra periferia virou termo vulgar para indicar a moradia de pobres, pretos, bandidos, assassinos, o marginal. Deixou de ser o perímetro da linguagem geográfica e ganhou o estigma da pobreza. Hoje a periferia virou centro e o centro virou periferia em grandes metrópoles. Em São Paulo, por exemplo, o centro fica extremamente vazio nos fins de semana. A periferia ferve com bailes, festas, eventos, tornando-se um grande chamariz. Para resgatar a origem da palavra periferia e carregá-la de um novo significado, dizemos que tudo que produzimos não está no centro, mas, sim, é o centro. Tudo que não produzimos não está na periferia e, sim, é a periferia. Este tipo de 'engajamento' pode até se tornar estigmatizado dependendo do olhar do observador. Se o olhar só quer ver a ilusória aparência e não consegue ir além, certamente não terá como ter uma visão clara da realidade e, consequentemente, terá uma falsa impressão depreciativa. A arte que desenvolvemos é a mesma que brota em qualquer lugar, desde que haja sensibilidade e percepção. Como o sol nasce e a chuva cai para todos, assim é a arte. A arte em si não sofre nenhum tipo depreciação. É imune aos nossos conceitos. A música, rainha das artes, tira o indivíduo do lugar-comum. Quem tem contato com ela, jamais será o mesmo.
O que podemos esperar de Wesley Nóog para este ano?
WN - Ao longo de 2015, temos muito trabalho pela frente na divulgação do nosso novo álbum SOUL ASSIM em shows e na Imprensa. O Corredor Cultural Mameluco Afro Brasileiro também desenvolverá ações na capital paulista e vai cumprir uma agenda pelas cidades do interior do Estado. Enfim, serão muitas ações, que é o que gostamos de fazer.
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