ENTREVISTA: MÍRIAM BEZERRA
Impregnada de brasilidade, Miriam Bezerra faz suas melodias permearem
de modo sutil pela rica sonoridade existente neste nosso país-continente e traz
principalmente o amor como regente de suas letras, composições estas que se apresentam
com uma característica bastante peculiar: um lirismo exacerbado.
Diferenciando-se de muitas do gênero, Miriam apresenta de modo pleno tanto em
suas letras consistentes quanto nas delgadas melodias, característica inerente a
algumas das grandes artistas de nossa música popular brasileira como vocês
puderam conferir na apresentação da artista aqui no JBF, na matéria intitulada "Quando os sentimentos se liquefazem
em um mar de tênues melodias", publicada ao longo da semana passada.
Nesta conversa Miriam revela-nos um pouco as influências que a música
nordestina exerce em sua obra e sobre o momento que percebeu que era preciso
dar um basta em sua timidez para realmente seguir a carreira que hoje abraçou.
Além das agruras em fazer música independente no Brasil como vocês podem
conferir no bate-papo exclusivo a seguir. Boa leitura!
Você, que vem de uma família
numerosa e aparentemente propensa à música, deve ter diversas “lembranças
sonoras” de sua infância. De todos os irmãos só você seguiu a carreira
artística? Quais as reminiscências musicais mais claras existentes em sua
memória?
Miriam Bezerra - Realmente,
minha família é muito numerosa. Gostos e vontades diversos. A constatação
inicial é que todos nós, de certa forma, éramos “cantores”. Nossa infância foi
muito marcada pela música. Todos nós realizávamos nossas tarefas domésticas,
cantando! Eu achava isso muito natural e imaginava que a casa de todo mundo
“funcionava” dessa maneira! Quando adulta descobri que nem toda família era
assim. A música estava sempre presente em nossa casa, e isso era muito
particular, ela estava lá, apesar das “botas”, “fardas” e “armas” de meu pai.
Minha mãe gostava de cantar canções de roda de sua infância. Meu pai, maestro
da banda militar, gostava de ouvir frevos e boleros. Certo dia, nos
surpreendeu, com um gravador e uma fita cassete de “Santo Morales e Seus
Boleros”! Nosso grande prazer era ouvir aquela fita milhões de vezes... toda
noite... até o sono chegar. Eu passei a amar boleros. Numa outra vez, nos deu a
cada uma, um rádio portátil. Foi aí, que eu enlouqueci com a música. O rádio
desempenhou um papel importantíssimo na minha descoberta da música e sua
amplitude. Essa é a minha principal lembrança... o prazer de estar embaixo das
cobertas... no escuro... ouvindo toda a música que quisesse!
Só eu segui a carreira da música, mas, tenho outros irmãos artistas.
Um é artista plástico, o outro, já falecido, era um grande carnavalesco. Vários
outros, esporadicamente, em algum momento, se envolveram com teatro e música.
Culturalmente falando o
Nordeste sempre teve uma grande relevância no cenário cultural do nosso país.
De certo modo você bebeu da fonte da cultura desta região através de seus pais,
que, nordestinos, trouxeram consigo um pouco dos ritmos e peculiaridades
particularmente de Pernambuco e da Paraíba. O que hoje você destaca em sua
sonoridade que tenha sido contribuição dessa “osmose” cultural? Principalmente
na sonoridade de "E que a tristeza seja chuva".
MB - Meu pai me fez conhecer e amar Luiz Gonzaga,
Sivuca, Jackson do Pandeiro e Dominguinhos. Eles, para mim, são o Nordeste.
Minha mãe trouxe as cantigas de roda, com forte influência portuguesa, além dos
costumes, dos bordados e das bruxinhas de pano que confeccionava. Meu irmão,
artista plástico, era também jornalista e ativista político. Através dele
mergulhei na literatura e cultura do mundo. Ele, inicialmente, trabalhava na
editora “Abril Cultural” e isso trouxe a relação apaixonada com os livros e discos.
Ele tinha, além de milhões de livros, uma grande coleção de discos, fascículos,
que contavam a história da musica popular brasileira. Isso foi muito marcante
pra mim. Era bem pequena e me deliciava, ouvindo e lendo a vida dos
compositores brasileiros. E foi através dele, também, que conheci Elomar, o
príncipe da caatinga, como já disse Vinícius. Essa grande mistura, essa
“osmose” cultural, como você diz, foi marcante no sentido de me despertar o
gosto pela música do Brasil. Eu costumo dizer, com muito orgulho, que fiz um
disco de “música brasileira”. A delicadeza, a inocência da infância, suas
imagens, o singelo... a roça, as festas, o sertão, a vida dos meus pais... está
tudo ali em letra e melodia.
Outra característica que consta
em sua biografia é que devido a timidez você sempre procurou esquivar-se do
palco. Qual foi o momento que você percebeu que era preciso dar um basta nessa
situação e ir de encontro ao seu desejo?
MB - Primeiramente, subi no
palco através do teatro. O que foi difícil, mas é muito mais fácil que cantar.
No teatro você tem o apoio de um personagem construído, que lhe dá base e
segurança. Na música, você está desnudo, sem nada que lhe proteja. Cantar é
estar exposto em seus sentimentos mais íntimos. Sempre costumo dizer que
cantar, dói. Dói muito... dói fundo. Mas, passada essa dor, vem uma sensação
tão grande de prazer, que é indescritível. Ainda que eu sofra, todas as vezes
que tenha que subir num palco, eu volto, sempre, à procura desse prazer, desse
contentamento. O desejo de cantar subverteu minha timidez, quando percebi que
precisava dar um salto e voar mais alto. De certa forma, foi uma cobrança
minha. Sendo tímida sempre me cobrei demais. Num determinado momento, uma
situação me exigiu, amigos me “forçaram”, a vida mostrou o caminho e a
oportunidade. Era agarrar e seguir, ou, deixar passar e me afundar em
tristezas. Com certeza, escolhi a melhor opção.
Fazer música de qualidade no
Brasil não é fácil. Os grandes canais midiáticos priorizam aquilo que os propicia
um retorno de audiência (e consequentemente financeiro) imediato deixando a
qualidade à margem do público. Você como artista que se encaixa neste perfil
independente deve vir passando por diversas adversidades neste processo de
divulgação e afirmação enquanto cantora e compositora. Quais as maiores
dificuldades encontradas até agora?
MB - Olha... as
dificuldades são enormes e desanimadoras. Eu diria que até agora, só conheci as
dificuldades. Fazer música de qualidade no Brasil, hoje, é mergulhar num
processo de profunda solidão. Isso, é claro, quando não se tem dinheiro, ou
apoios, como no meu caso. Fiz meu disco inteiro, juntando economias e lutando
para cumprir todas as etapas, da melhor forma possível. As pessoas não têm
noção do quanto é trabalhoso gravar um disco. Pagar e cuidar de ensaios,
estúdio, músicos, mixagem, masterização, capa, fotos, prensagem, além de
“fazer” as canções, é extremamente custoso e desgastante. E quando você se vê
com caixas e mais caixas de Cd's a sua frente, você entra em desespero
pensando... e agora? O que é que eu vou fazer? Você tem que cuidar de tudo e
isso, às vezes, faz enlouquecer, faz querer desistir. Você já tem o seu Cd
pronto e ainda tem que lutar. Agora, pra conseguir um espaço e mostrar o seu
trabalho. Tudo envolve dinheiro e posição. No meu caso, sou uma ilustre
desconhecida. É difícil conseguir uma data em um teatro e ter que arcar com
despesas de músicos e técnicos. E se você pretende um show mais elaborado, com
cenário e figurino, um bom roteiro... a coisa se complica mais ainda.
Em um país onde
tradicionalmente a grande maioria das cantoras são intérpretes, você se destaca
também como compositora. Como se dá seu processo de composição?
MB - Em verdade, sou uma
compositora, antes de tudo, intuitiva. Sinto a música, ela se faz dentro de
mim, dentro da minha cabeça e da minha emoção. É como se ela já existisse,
estivesse lá... pronta... só esperando o momento de ser revelada. Não foi feita
por mim...eu só a transformei em palavras e sons. Faço letra e melodia
juntas... sempre apoiada por um fiel gravador. Às vezes uma conversa, uma
palavra, uma cena, um poema, uma lembrança...e lá vem o encadeamento, a ideia,
a canção. Registro e depois ouço. Daí vou lapidando, trabalhando, melhorando.
Amo as palavras, procuro sempre valorizá-las. Melodia e letra têm que se casar
com grandeza. Toda letra é poesia. Toda melodia é encanto.
É inegável que você tem uma
forte ligação com o teatro, particularmente na composição da trilha sonora de
alguns espetáculos com as quais você ganhou prêmios relevantes como o
"Prêmio Pagu" e o "Prêmio Estadual Plínio Marcos. Fale-nos um
pouco sobre essa relação com as artes cênicas e como ela contribui (ou inspira)
o seu universo musical.
MB - Na verdade, a base de
tudo é a literatura. Sou alguém que leu muito, desde menina. A leitura nos dá a
amplitude e grandeza suficientes para pensar e refletir o mundo e a vida. A
literatura me deu o gosto pela palavra, me fez ser alguém politizada,
questionadora. As palavras me deram sensibilidade e me fizeram ser amante das
artes. Amo escrever, amo cinema, teatro, música, pintura. Quando criança era
modelo vivo, pro meu irmão. Ficava horas e hora imóvel, sentada, pra que ele
pintasse “suas ideias”. A arte e a vontade dela, sempre foi o centro de tudo.
Fazer teatro foi uma consequência. Através dele acabei me encantando e fazendo
faculdade de Artes Cênicas. Quando comecei a cantar, foi inevitável juntar
tudo. Em alguns espetáculos me pediam para cantar. Às vezes, meu personagem cantava
em cena, outras vezes, gravava as canções dos personagens em estúdio. Daí, uma
vez, recebi um convite para compor as músicas de um espetáculo infantil. Foi o
primeiro passo, comecei a gostar e segui fazendo isso por muito tempo. O teatro
e a vida caminham juntos. Vejo a vida como uma grande encenação, uma seleção de
cenas. Algumas alegres, outras tristes, aquelas que não gostaríamos de ter
vivenciado. Mas tudo é experimento e experiência. A música desse grande
espetáculo fazemos todos os dias.
Você acha que este êxito e
reconhecimento nas artes cênicas é algo que contribui de algum modo para o
sucesso dessa estreia no universo fonográfico ou sua responsabilidade acaba
tornando-se maior devido à bem sucedida carreira de compositora de trilhas sonoras?
MB - Vejo aí uma dualidade.
De certa forma, a experiência teatral ajuda, mas, ao mesmo tempo, faz a
cobrança ser maior. Na verdade, são realidades diferentes. As experiências são
complementares, mas os caminhos são independentes e exigem, cada qual ao seu
modo, uma intenção e uma dedicação diferente. Fazer uma trilha sonora é
participar de um projeto, fazer parte de uma engrenagem que já está pronta.
Fazer um disco, fazer canções, é passar por um processo mais individualizado e,
também, solitário. Minhas trilhas foram muito elogiadas, muito bem recebidas.
Abrilhantaram e enriqueceram os espetáculos de outros profissionais. Meu Cd,
até aqui, tem sido muito elogiado. As pessoas me abordam dizendo que amam
determinadas canções, se identificam com aquele sentimento exposto, se
emocionam. Em ambas as experiências, me sinto uma privilegiada, pois toquei o
coração de alguém.
Quais as contribuições que você
poderia destacar como relevante depois de sua passagem por alguns grupos,
dentre os quais os “Trovadores Urbanos”, que refletem-se em sua carreira solo?
MB - Os Trovadores Urbanos
desenvolvem um projeto maravilhoso. Quando fui convidada a trabalhar com eles,
inicialmente, não me senti capaz. O diferencial é que, além de “atuar” e cantar,
na cena da serenata, e você ainda tem que entrar em uma casa e cantar
diretamente para alguém. Você não sabe a emoção que vai encontrar ali. Não
imagina como vai ser recebido. Parece simples, mas é algo poderoso demais. Você
se vê diante de todo tipo de pessoa, todo tipo de situações. Isso me fez
crescer muito. Você canta na festa, rodeada por emoção e alegria, mas também
canta num leito de hospital, cercada de dor e lágrimas. É muito emocionante e,
ao mesmo tempo, você tem que conseguir dosar essa emoção. Essa experiência me
fez mais forte, mais segura. Me deu a noção exata da grandeza e do poder da
música. A música transforma.
O álbum "E que a tristeza
seja chuva", tem por característica a sutil abordagem a diversidade sonora
existente em nosso país e letras que prezam pelo requinte e lirismo como podem
observar aqueles que tiveram a oportunidade de ouvi-lo. Como se deu a seleção
do repertório?
MB - A seleção se deu de maneira bem natural.
Tinha várias composições que queria gravar, mas nem todas poderiam entrar o
mesmo Cd. Fui gravando uma a uma e tentando compor um universo, uma estória.
Automaticamente, muita coisa ficou de fora, guardada, para um próximo trabalho.
Como tem sido a receptividade
do público nos locais por onde você tem levado "E que a tristeza seja
chuva"?
MB - A melhor possível. E
isso tem me feito muito feliz! Até aqui só recebi elogios. As canções despertam
os sentimentos mais puros. Eu falo de amor, falo da delicadeza, do que é
simples, do que é verdadeiro. Acredito que, hoje, diante da realidade tão dura
que vivemos, as pessoas estão carentes disso. Tendo de corresponder a modelos
sociais e expectativas, acerca do que venha a ser o indivíduo “bem sucedido”,
as pessoas estão se perdendo de seu lado humano, infantil, amoroso. A minha
música procura mostrar a necessidade de deixar que esses sentimentos primeiros,
da criança, do sonho, da descoberta, do amor... falem mais alto e nos resgatem
da escuridão. E que a tristeza seja chuva... lavando nossa alma e levando
embora nossas dores.
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