sexta-feira, 22 de novembro de 2013

BRUNO NEGROMONTE

ENTREVISTA: MÍRIAM BEZERRA 



Impregnada de brasilidade, Miriam Bezerra faz suas melodias permearem de modo sutil pela rica sonoridade existente neste nosso país-continente e traz principalmente o amor como regente de suas letras, composições estas que se apresentam com uma característica bastante peculiar: um lirismo exacerbado. Diferenciando-se de muitas do gênero, Miriam apresenta de modo pleno tanto em suas letras consistentes quanto nas delgadas melodias, característica inerente a algumas das grandes artistas de nossa música popular brasileira como vocês puderam conferir na apresentação da artista aqui no JBF, na matéria intitulada "Quando os sentimentos se liquefazem em um mar de tênues melodias", publicada ao longo da semana passada. Nesta conversa Miriam revela-nos um pouco as influências que a música nordestina exerce em sua obra e sobre o momento que percebeu que era preciso dar um basta em sua timidez para realmente seguir a carreira que hoje abraçou. Além das agruras em fazer música independente no Brasil como vocês podem conferir no bate-papo exclusivo a seguir. Boa leitura!


Você, que vem de uma família numerosa e aparentemente propensa à música, deve ter diversas “lembranças sonoras” de sua infância. De todos os irmãos só você seguiu a carreira artística? Quais as reminiscências musicais mais claras existentes em sua memória?

Miriam Bezerra - Realmente, minha família é muito numerosa. Gostos e vontades diversos. A constatação inicial é que todos nós, de certa forma, éramos “cantores”. Nossa infância foi muito marcada pela música. Todos nós realizávamos nossas tarefas domésticas, cantando! Eu achava isso muito natural e imaginava que a casa de todo mundo “funcionava” dessa maneira! Quando adulta descobri que nem toda família era assim. A música estava sempre presente em nossa casa, e isso era muito particular, ela estava lá, apesar das “botas”, “fardas” e “armas” de meu pai. Minha mãe gostava de cantar canções de roda de sua infância. Meu pai, maestro da banda militar, gostava de ouvir frevos e boleros. Certo dia, nos surpreendeu, com um gravador e uma fita cassete de “Santo Morales e Seus Boleros”! Nosso grande prazer era ouvir aquela fita milhões de vezes... toda noite... até o sono chegar. Eu passei a amar boleros. Numa outra vez, nos deu a cada uma, um rádio portátil. Foi aí, que eu enlouqueci com a música. O rádio desempenhou um papel importantíssimo na minha descoberta da música e sua amplitude. Essa é a minha principal lembrança... o prazer de estar embaixo das cobertas... no escuro... ouvindo toda a música que quisesse!

Só eu segui a carreira da música, mas, tenho outros irmãos artistas. Um é artista plástico, o outro, já falecido, era um grande carnavalesco. Vários outros, esporadicamente, em algum momento, se envolveram com teatro e música.


Culturalmente falando o Nordeste sempre teve uma grande relevância no cenário cultural do nosso país. De certo modo você bebeu da fonte da cultura desta região através de seus pais, que, nordestinos, trouxeram consigo um pouco dos ritmos e peculiaridades particularmente de Pernambuco e da Paraíba. O que hoje você destaca em sua sonoridade que tenha sido contribuição dessa “osmose” cultural? Principalmente na sonoridade de "E que a tristeza seja chuva".

MB -  Meu pai me fez conhecer e amar Luiz Gonzaga, Sivuca, Jackson do Pandeiro e Dominguinhos. Eles, para mim, são o Nordeste. Minha mãe trouxe as cantigas de roda, com forte influência portuguesa, além dos costumes, dos bordados e das bruxinhas de pano que confeccionava. Meu irmão, artista plástico, era também jornalista e ativista político. Através dele mergulhei na literatura e cultura do mundo. Ele, inicialmente, trabalhava na editora “Abril Cultural” e isso trouxe a relação apaixonada com os livros e discos. Ele tinha, além de milhões de livros, uma grande coleção de discos, fascículos, que contavam a história da musica popular brasileira. Isso foi muito marcante pra mim. Era bem pequena e me deliciava, ouvindo e lendo a vida dos compositores brasileiros. E foi através dele, também, que conheci Elomar, o príncipe da caatinga, como já disse Vinícius. Essa grande mistura, essa “osmose” cultural, como você diz, foi marcante no sentido de me despertar o gosto pela música do Brasil. Eu costumo dizer, com muito orgulho, que fiz um disco de “música brasileira”. A delicadeza, a inocência da infância, suas imagens, o singelo... a roça, as festas, o sertão, a vida dos meus pais... está tudo ali em letra e melodia.


Outra característica que consta em sua biografia é que devido a timidez você sempre procurou esquivar-se do palco. Qual foi o momento que você percebeu que era preciso dar um basta nessa situação e ir de encontro ao seu desejo?

MB - Primeiramente, subi no palco através do teatro. O que foi difícil, mas é muito mais fácil que cantar. No teatro você tem o apoio de um personagem construído, que lhe dá base e segurança. Na música, você está desnudo, sem nada que lhe proteja. Cantar é estar exposto em seus sentimentos mais íntimos. Sempre costumo dizer que cantar, dói. Dói muito... dói fundo. Mas, passada essa dor, vem uma sensação tão grande de prazer, que é indescritível. Ainda que eu sofra, todas as vezes que tenha que subir num palco, eu volto, sempre, à procura desse prazer, desse contentamento. O desejo de cantar subverteu minha timidez, quando percebi que precisava dar um salto e voar mais alto. De certa forma, foi uma cobrança minha. Sendo tímida sempre me cobrei demais. Num determinado momento, uma situação me exigiu, amigos me “forçaram”, a vida mostrou o caminho e a oportunidade. Era agarrar e seguir, ou, deixar passar e me afundar em tristezas. Com certeza, escolhi a melhor opção.


Fazer música de qualidade no Brasil não é fácil. Os grandes canais midiáticos priorizam aquilo que os propicia um retorno de audiência (e consequentemente financeiro) imediato deixando a qualidade à margem do público. Você como artista que se encaixa neste perfil independente deve vir passando por diversas adversidades neste processo de divulgação e afirmação enquanto cantora e compositora. Quais as maiores dificuldades encontradas até agora?

MB - Olha... as dificuldades são enormes e desanimadoras. Eu diria que até agora, só conheci as dificuldades. Fazer música de qualidade no Brasil, hoje, é mergulhar num processo de profunda solidão. Isso, é claro, quando não se tem dinheiro, ou apoios, como no meu caso. Fiz meu disco inteiro, juntando economias e lutando para cumprir todas as etapas, da melhor forma possível. As pessoas não têm noção do quanto é trabalhoso gravar um disco. Pagar e cuidar de ensaios, estúdio, músicos, mixagem, masterização, capa, fotos, prensagem, além de “fazer” as canções, é extremamente custoso e desgastante. E quando você se vê com caixas e mais caixas de Cd's a sua frente, você entra em desespero pensando... e agora? O que é que eu vou fazer? Você tem que cuidar de tudo e isso, às vezes, faz enlouquecer, faz querer desistir. Você já tem o seu Cd pronto e ainda tem que lutar. Agora, pra conseguir um espaço e mostrar o seu trabalho. Tudo envolve dinheiro e posição. No meu caso, sou uma ilustre desconhecida. É difícil conseguir uma data em um teatro e ter que arcar com despesas de músicos e técnicos. E se você pretende um show mais elaborado, com cenário e figurino, um bom roteiro... a coisa se complica mais ainda.

Em um país onde tradicionalmente a grande maioria das cantoras são intérpretes, você se destaca também como compositora. Como se dá seu processo de composição?

MB - Em verdade, sou uma compositora, antes de tudo, intuitiva. Sinto a música, ela se faz dentro de mim, dentro da minha cabeça e da minha emoção. É como se ela já existisse, estivesse lá... pronta... só esperando o momento de ser revelada. Não foi feita por mim...eu só a transformei em palavras e sons. Faço letra e melodia juntas... sempre apoiada por um fiel gravador. Às vezes uma conversa, uma palavra, uma cena, um poema, uma lembrança...e lá vem o encadeamento, a ideia, a canção. Registro e depois ouço. Daí vou lapidando, trabalhando, melhorando. Amo as palavras, procuro sempre valorizá-las. Melodia e letra têm que se casar com grandeza. Toda letra é poesia. Toda melodia é encanto.


É inegável que você tem uma forte ligação com o teatro, particularmente na composição da trilha sonora de alguns espetáculos com as quais você ganhou prêmios relevantes como o "Prêmio Pagu" e o "Prêmio Estadual Plínio Marcos. Fale-nos um pouco sobre essa relação com as artes cênicas e como ela contribui (ou inspira) o seu universo musical.

MB - Na verdade, a base de tudo é a literatura. Sou alguém que leu muito, desde menina. A leitura nos dá a amplitude e grandeza suficientes para pensar e refletir o mundo e a vida. A literatura me deu o gosto pela palavra, me fez ser alguém politizada, questionadora. As palavras me deram sensibilidade e me fizeram ser amante das artes. Amo escrever, amo cinema, teatro, música, pintura. Quando criança era modelo vivo, pro meu irmão. Ficava horas e hora imóvel, sentada, pra que ele pintasse “suas ideias”. A arte e a vontade dela, sempre foi o centro de tudo. Fazer teatro foi uma consequência. Através dele acabei me encantando e fazendo faculdade de Artes Cênicas. Quando comecei a cantar, foi inevitável juntar tudo. Em alguns espetáculos me pediam para cantar. Às vezes, meu personagem cantava em cena, outras vezes, gravava as canções dos personagens em estúdio. Daí, uma vez, recebi um convite para compor as músicas de um espetáculo infantil. Foi o primeiro passo, comecei a gostar e segui fazendo isso por muito tempo. O teatro e a vida caminham juntos. Vejo a vida como uma grande encenação, uma seleção de cenas. Algumas alegres, outras tristes, aquelas que não gostaríamos de ter vivenciado. Mas tudo é experimento e experiência. A música desse grande espetáculo fazemos todos os dias.

Você acha que este êxito e reconhecimento nas artes cênicas é algo que contribui de algum modo para o sucesso dessa estreia no universo fonográfico ou sua responsabilidade acaba tornando-se maior devido à bem sucedida carreira de compositora de trilhas sonoras?

MB - Vejo aí uma dualidade. De certa forma, a experiência teatral ajuda, mas, ao mesmo tempo, faz a cobrança ser maior. Na verdade, são realidades diferentes. As experiências são complementares, mas os caminhos são independentes e exigem, cada qual ao seu modo, uma intenção e uma dedicação diferente. Fazer uma trilha sonora é participar de um projeto, fazer parte de uma engrenagem que já está pronta. Fazer um disco, fazer canções, é passar por um processo mais individualizado e, também, solitário. Minhas trilhas foram muito elogiadas, muito bem recebidas. Abrilhantaram e enriqueceram os espetáculos de outros profissionais. Meu Cd, até aqui, tem sido muito elogiado. As pessoas me abordam dizendo que amam determinadas canções, se identificam com aquele sentimento exposto, se emocionam. Em ambas as experiências, me sinto uma privilegiada, pois toquei o coração de alguém.

Quais as contribuições que você poderia destacar como relevante depois de sua passagem por alguns grupos, dentre os quais os “Trovadores Urbanos”, que refletem-se em sua carreira solo?

MB - Os Trovadores Urbanos desenvolvem um projeto maravilhoso. Quando fui convidada a trabalhar com eles, inicialmente, não me senti capaz. O diferencial é que, além de “atuar” e cantar, na cena da serenata, e você ainda tem que entrar em uma casa e cantar diretamente para alguém. Você não sabe a emoção que vai encontrar ali. Não imagina como vai ser recebido. Parece simples, mas é algo poderoso demais. Você se vê diante de todo tipo de pessoa, todo tipo de situações. Isso me fez crescer muito. Você canta na festa, rodeada por emoção e alegria, mas também canta num leito de hospital, cercada de dor e lágrimas. É muito emocionante e, ao mesmo tempo, você tem que conseguir dosar essa emoção. Essa experiência me fez mais forte, mais segura. Me deu a noção exata da grandeza e do poder da música. A música transforma.

O álbum "E que a tristeza seja chuva", tem por característica a sutil abordagem a diversidade sonora existente em nosso país e letras que prezam pelo requinte e lirismo como podem observar aqueles que tiveram a oportunidade de ouvi-lo. Como se deu a seleção do repertório?

MB -  A seleção se deu de maneira bem natural. Tinha várias composições que queria gravar, mas nem todas poderiam entrar o mesmo Cd. Fui gravando uma a uma e tentando compor um universo, uma estória. Automaticamente, muita coisa ficou de fora, guardada, para um próximo trabalho.

Como tem sido a receptividade do público nos locais por onde você tem levado "E que a tristeza seja chuva"?

MB - A melhor possível. E isso tem me feito muito feliz! Até aqui só recebi elogios. As canções despertam os sentimentos mais puros. Eu falo de amor, falo da delicadeza, do que é simples, do que é verdadeiro. Acredito que, hoje, diante da realidade tão dura que vivemos, as pessoas estão carentes disso. Tendo de corresponder a modelos sociais e expectativas, acerca do que venha a ser o indivíduo “bem sucedido”, as pessoas estão se perdendo de seu lado humano, infantil, amoroso. A minha música procura mostrar a necessidade de deixar que esses sentimentos primeiros, da criança, do sonho, da descoberta, do amor... falem mais alto e nos resgatem da escuridão. E que a tristeza seja chuva... lavando nossa alma e levando embora nossas dores.












Nenhum comentário:

Postar um comentário