Ilustração: Arquivo Google |
O
OUTRO LADO DO ASSÉDIO
Anônimos
eram preteridos por quem topava o assédio,
acompanhado
de promoções e salários
POR WALCYR
CARRASCO
Época
Digital
23/01/2018
- 08h00
Durante boa parte da minha vida profissional,
eu fui vítima de assédio sexual. Calma. Já explico. É mais complicado do que
parece. Tanto que meu primeiro impulso, ao saber do manifesto das mulheres
francesas, foi libertador. Que mal faz um galanteio no ambiente de trabalho,
afinal? Tenho horror a entrar num clima de caça às bruxas. Hoje, nos Estados
Unidos, homem algum tem coragem de entrar no elevador sozinho com uma mulher. É
mais fácil as pessoas se conhecerem no ambiente de trabalho, fora de dúvida. A
convivência produz relacionamentos. Elogio, paquerada, é crime? Desde que se
saiba ouvir não... Por outro lado, se a tentativa envolve relação de poder,
fica difícil. O chefe pode demitir, se não rolar. Ou não escolher a candidata,
como no caso de tantos filmes americanos. Podem se horrorizar comigo. Boa parte
das famosas de Hollywood que hoje denunciam assédio topou. Das outras nem se
sabe o nome. Há um caso antiquíssimo da TV brasileira, cujos personagens nem
estão mais na ativa. Um superexecutivo foi em cima de uma atriz. Ela atirou um
cinzeiro na cara dele. Nunca mais se ouviu falar nela. Mas há um aspecto do
assédio em que ninguém tocou.
Volto ao início. Fui vítima do assédio, mas
indiretamente. Durante anos, antes de ser autor de novelas, trabalhei em
grandes empresas, em funções diferentes. Inclusive como jornalista. Mas não só.
Lembro-me de que certa vez me espantei com a absoluta incompetência de uma
chefe. Mas logo me explicaram.
– Ela teve caso com o dono da empresa.
Em meu currículo consta um número incontável
de amantes que viraram chefes, diretoras, executivas. A mulher tinha caso com o
dono, o presidente? Virava diretora, executiva. Hoje, qualquer uma delas pode
dizer que foi assediada na carreira. Mas e quem, como eu, era obrigado a
obedecer a uma chefe horrorosa, só porque ela teve um caso com a pessoa certa?
Trabalhei em empresas cujos donos eram gulosos. Em vários cargos de direção,
estavam ex-namoradas. Hoje se diria que a ex foi vítima do assédio. Vamos
combinar? As vítimas também éramos nós, eu e meus colegas. Nós, que ficamos à
margem, aguardando promoções que nunca vinham, enquanto poderosos cometiam
assédios. Bem recebidos assédios também aconteciam com homens. Certa vez, fiz
um trabalho para uma editora (não tentem adivinhar, eu também traduzo, fiz
revisões de livros...). O presidente era um rapaz bonitão. E me avisaram que
não sabia nada, mas transava com o dono. Trabalhei por mim e por ele.
Uma amiga trabalhava numa grande empresa do
ramo editorial. O patrão tinha caso com a secretária. (Secretária era um alvo
clássico dos tempos pré-denúncias.) Curvilínea, a tal tinha tanto silicone que,
se riscassem um fósforo por perto, explodia. Tudo pago pelo dono da empresa. Minha
amiga desabafou:
– Não vou suportar se tiver de responder a
ela.
Teve. A do silicone foi promovida a diretora,
sem saber escrever uma linha ou escolher a capa de um livro.
Nem no jornalismo, que tanto denuncia, tem
sido diferente. Deu até em assassinato. Há anos, o então diretor de redação de
O Estado de S. Paulo Pimenta Neves matou a jornalista Sandra Gomide, sua
namorada. Foi um escândalo. Que Deus a tenha. Mas, nas redações onde ambos
trabalharam, sabia-se que era intocável. Por ser a namorada do chefão. Chegou a
ser editora, tendo jovens jornalistas, semelhantes a mim no passado,
subordinados a ela. Pessoalmente, nunca trabalhei com essa pessoa, mas passei
por situações parecidas. Fiz faculdade de jornalismo. Como jornalista,
trabalhei em grandes veículos. Mas meu currículo era pó diante de uma amante. O
mesmo acontece em praticamente qualquer ambiente profissional. Talvez não nos
técnicos, e olha lá... As pessoas adoram falar do mundo artístico. Estrelas de
Hollywood denunciando têm mais força. O uso de um cargo, de um pequeno poder,
para sexo, há em todas as profissões. E a pessoa incompetente que tomou o poder
mais tarde repete a fórmula. Envelhece no cargo e abre espaço para outro
incompetente subir na vida.
Este é o lado banal do assédio. Dos anônimos,
como eu fui, preteridos por alguém que topava. E vamos falar a verdade? Com
acompanhamento de promoções e salários, muitos e muitas queriam ser assediados.
Entravam na fila, no passado. Quem estava fora dela é que se dava mal. O maior
legado desse barulho contra o assédio não é só o fim desse tipo de abuso. Mas
abrir oportunidades para as pessoas serem promovidas pela competência.
***
WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da
revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
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