Ilustração: Stockfresh |
HORA
DA VERDADE
Muitos
adultos pensam, esquecendo a própria infância,
que
a criança é um anjinho ingênuo e intocável
POR WALCYR
CARRASCO
Época
Digital
30/01/2018
- 08h00
Criança sabe ou não de sexo? Com que idade?
Não estou falando do que seria ideal, em termos educacionais, teóricos etc.
etc. Mas do real. Informações sobre sexo variam muito entre as classes sociais
e locais de moradia. Escrevo livros infantojuvenis. Em certa época, muitos
autores amigos achavam importante falar de sexo em seus livros. Eu não. Pelo
simples fato, comentei com uma escritora amiga minha, que as crianças saberiam
mais sobre sexo do que eu. Já soube de casos absurdos. Uma escola adotou um
livro de um amigo para leitura paradidática. Em certa página, o casal de
adolescentes descobria o sexo. Alguns pais fizeram escândalo. A solução da
escola foi arrancar a página específica e queimar! Muitos adultos pensam,
esquecendo a própria infância, que a criança é um anjinho ingênuo e intocável,
a quem as informações jamais devem ser oferecidas. Nossa, quanta bobagem! Entre
meus muitos livros, tenho um que aborda a questão do crack, Vida de droga. A
personagem é uma adolescente que se vicia. Escrevi a partir de entrevistas com
adolescentes. Achava que seria um fracasso absoluto, devido à ousadia do tema.
Para minha surpresa, logo após o lançamento, fui chamado para dar muitas
palestras em escolas religiosas. Um dia perguntei para uma freira se não se
chocava com o tema.
– A gente quer mostrar como realmente
acontece! O fundo do poço! Para evitar o vício – disse ela.
Achei interessante. Mas foi em um colégio
público, na periferia de São Paulo, que descobri a real. Dei uma palestra e, em
seguida, assisti à dramatização do meu livro, feita pelos próprios alunos. Para
minha surpresa, havia cachimbos em cena e uma descrição do uso de crack
absolutamente completa! No intervalo, falei com a diretora e com os
professores. Comentei sobre meu medo de o livro ser pesado. A diretora apontou
a janela.
– Está vendo aquela esquina? Atravessando a
rua?
Concordei.
– Boa parte das alunas sai daqui no fim da
tarde e vai se prostituir, logo ali.
Eu todo cheio de dedos. A diretora me revelou
outras coisas de arrepiar.
– Pegamos uma aluna com seis garotos.
Chamamos a família. Mas... como lidar com isso?
Eu já quebrei a cara em palestra. Tenho outro
livro, A corrente da vida, que fala
sobre a contaminação do HIV entre jovens. Fui a uma cidade próxima a São Paulo.
Terminada a palestra em que falei sobre os riscos – nessas ocasiões, sou bem
professoral –, pedi aos alunos que me enviassem perguntas escritas e anônimas,
para que cada um se sentisse à vontade para perguntar o que quisesse. Lá pelas
tantas, veio: “É possível reutilizar uma seringa?”.
Olhei para aqueles rostinhos, entre 10 e 12
anos. E me senti no papel de moralizar. Respondi:
– Nunca se pode reutilizar uma seringa,
porque há risco de contaminação.
Sinceramente, eu só queria que ninguém
naquela sala usasse a tal seringa. Um garoto de no máximo 11 anos ergueu a mão.
– O senhor está mentindo. Para esterilizar
uma seringa, a gente faz assim, assim...
E deu o serviço. Quase caí duro.
Meus livros abordam temas atuais, mas não em
torno da sexualidade. Vi amigos despencar nas vendas porque pais reclamam de
situações que, segundo dizem, os filhos não podem saber. Na televisão e em todo
meio de comunicação, a mesma pressão. Até na propaganda. Proíbem-se anúncios e
comerciais para crianças, para não criar desejos que redundem em frustrações se
o pai não puder comprar. Fui um menino pobre, tive muitos desejos que meus pais
não puderam satisfazer. Isso me deu noção de limites. Não um sofrimento atroz.
A não ser por um cavalo branco, que eu desejava ter no quintal. Foram anos de
briga com o Papai Noel, que nunca trazia o tal cavalo!
Eu vejo argumentos de educadores e penso:
onde é que eles estão, num país em que adolescentes têm seu primeiro filho aos
12, 13 anos? E onde o problema já é evitar o segundo? Onde as drogas correm
solto nas praias, escolas? Vamos continuar fingindo que nada disso existe? Que
a criança é um anjinho de procissão?
Penso que está na hora de rever o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Rever situações que satisfazem aos adultos, aos
teóricos, mas não resolvem as questões básicas. Penso que aulas de educação
sexual, com valores, jamais poderiam ser abolidas, porque ou a criança já sabe
ou vai saber de um jeito pior.
Eu só não entendo como os teóricos de
educação e tantos pais podem ser tão inocentes – enquanto para crianças e
adolescentes basta abrir a internet e fazer o diabo.
***
WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da
revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.
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