segunda-feira, 3 de setembro de 2018

CRÔNICA: WALCYR CARRASCO

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Ilustração: Stockfresh


HORA DA VERDADE

Muitos adultos pensam, esquecendo a própria infância,
que a criança é um anjinho ingênuo e intocável

POR WALCYR CARRASCO
Época Digital
30/01/2018 - 08h00

Criança sabe ou não de sexo? Com que idade? Não estou falando do que seria ideal, em termos educacionais, teóricos etc. etc. Mas do real. Informações sobre sexo variam muito entre as classes sociais e locais de moradia. Escrevo livros infantojuvenis. Em certa época, muitos autores amigos achavam importante falar de sexo em seus livros. Eu não. Pelo simples fato, comentei com uma escritora amiga minha, que as crianças saberiam mais sobre sexo do que eu. Já soube de casos absurdos. Uma escola adotou um livro de um amigo para leitura paradidática. Em certa página, o casal de adolescentes descobria o sexo. Alguns pais fizeram escândalo. A solução da escola foi arrancar a página específica e queimar! Muitos adultos pensam, esquecendo a própria infância, que a criança é um anjinho ingênuo e intocável, a quem as informações jamais devem ser oferecidas. Nossa, quanta bobagem! Entre meus muitos livros, tenho um que aborda a questão do crack, Vida de droga. A personagem é uma adolescente que se vicia. Escrevi a partir de entrevistas com adolescentes. Achava que seria um fracasso absoluto, devido à ousadia do tema. Para minha surpresa, logo após o lançamento, fui chamado para dar muitas palestras em escolas religiosas. Um dia perguntei para uma freira se não se chocava com o tema.


– A gente quer mostrar como realmente acontece! O fundo do poço! Para evitar o vício – disse ela.

Achei interessante. Mas foi em um colégio público, na periferia de São Paulo, que descobri a real. Dei uma palestra e, em seguida, assisti à dramatização do meu livro, feita pelos próprios alunos. Para minha surpresa, havia cachimbos em cena e uma descrição do uso de crack absolutamente completa! No intervalo, falei com a diretora e com os professores. Comentei sobre meu medo de o livro ser pesado. A diretora apontou a janela.

– Está vendo aquela esquina? Atravessando a rua?

Concordei.

– Boa parte das alunas sai daqui no fim da tarde e vai se prostituir, logo ali.

Eu todo cheio de dedos. A diretora me revelou outras coisas de arrepiar.

– Pegamos uma aluna com seis garotos. Chamamos a família. Mas... como lidar com isso?

Eu já quebrei a cara em palestra. Tenho outro livro, A corrente da vida, que fala sobre a contaminação do HIV entre jovens. Fui a uma cidade próxima a São Paulo. Terminada a palestra em que falei sobre os riscos – nessas ocasiões, sou bem professoral –, pedi aos alunos que me enviassem perguntas escritas e anônimas, para que cada um se sentisse à vontade para perguntar o que quisesse. Lá pelas tantas, veio: “É possível reutilizar uma seringa?”.

Olhei para aqueles rostinhos, entre 10 e 12 anos. E me senti no papel de moralizar. Respondi:

– Nunca se pode reutilizar uma seringa, porque há risco de contaminação.

Sinceramente, eu só queria que ninguém naquela sala usasse a tal seringa. Um garoto de no máximo 11 anos ergueu a mão.

– O senhor está mentindo. Para esterilizar uma seringa, a gente faz assim, assim...

E deu o serviço. Quase caí duro.


Meus livros abordam temas atuais, mas não em torno da sexualidade. Vi amigos despencar nas vendas porque pais reclamam de situações que, segundo dizem, os filhos não podem saber. Na televisão e em todo meio de comunicação, a mesma pressão. Até na propaganda. Proíbem-se anúncios e comerciais para crianças, para não criar desejos que redundem em frustrações se o pai não puder comprar. Fui um menino pobre, tive muitos desejos que meus pais não puderam satisfazer. Isso me deu noção de limites. Não um sofrimento atroz. A não ser por um cavalo branco, que eu desejava ter no quintal. Foram anos de briga com o Papai Noel, que nunca trazia o tal cavalo!

Eu vejo argumentos de educadores e penso: onde é que eles estão, num país em que adolescentes têm seu primeiro filho aos 12, 13 anos? E onde o problema já é evitar o segundo? Onde as drogas correm solto nas praias, escolas? Vamos continuar fingindo que nada disso existe? Que a criança é um anjinho de procissão?

Penso que está na hora de rever o Estatuto da Criança e do Adolescente. Rever situações que satisfazem aos adultos, aos teóricos, mas não resolvem as questões básicas. Penso que aulas de educação sexual, com valores, jamais poderiam ser abolidas, porque ou a criança já sabe ou vai saber de um jeito pior.

Eu só não entendo como os teóricos de educação e tantos pais podem ser tão inocentes – enquanto para crianças e adolescentes basta abrir a internet e fazer o diabo.

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WALCYR CARRASCO é jornalista, colunista da revista Época, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão.


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