UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA
Olhou para mim e falou sem constrangimento: “Criei os meus filhos com
esse dinheiro e agora estou ajudando a criar os meus netos. Sou feliz assim.
Por isso, todos os dias venho trabalhar e dar a minha contribuição à repartição
em que trabalho há mais de trinta anos. Sou funcionário público e me sinto
orgulhoso em servir ao povo do meu país. Não me interessam os que não pensam
assim, os que roubam e se locupletam com o dinheiro público. Não tenho nada a
ver com isso e nem quero ter. É uma questão de consciência íntima. Cada um só
dá o que pode ou sabe dar”.
Até hoje eu não sei se aquela falação foi um desabafo ou um momento
definitivo de encontro dele consigo mesmo. Também sei por que foi a mim
dirigida. Nem mesmo o conhecia, embora tenha com ele simpatizado desde o
começo. Era um homem simples, como todos os homens de bem, e parecia ser feliz
e estar em paz consigo mesmo.
Aquela atitude inusitada levou-me a refletir sobre o papel de cada um de
nós neste mundo de Deus e do diabo, sobre a responsabilidade dos nossos atos e
do exemplo a dar aos que nos rodeiam e amam.
Levou-me a refletir até mesmo sobre o direito de cada um equivocar-se
com as ideias do mundo. Sim, porque penso que há os que erram repletos de má
intenção e calculismo, e há os que erram por alguma concepção equivocada do seu
papel na vida ou das ideias elaboradas.
Talvez tenha sido essa sinceridade exagerada, em um mundo onde quase
todos dissimulam e tentam vender uma imagem nem sempre verdadeira de si mesmo,
que me fez escrever essas mal traçadas linhas. Em um mundo repleto de
espertezas, talvez essa seja realmente uma esperteza maior. Nem mesmo consigo
imaginar, porém, como seria o mundo se todos pensassem e agissem assim.
Como a maturidade sempre nos traz a certeza da inutilidade das
elucubrações impossíveis e inviáveis, não alimentei por muito tempo a ideia da
perfeição, mas permiti-me imaginar as relações humanas e pessoais sem as
veleidades existentes e sem a necessidade dos subterfúgios enganadores.
Durante alguns dias, aquele homem e a sua falação não me saíram da
cabeça. Depois, fui voltando novamente as minhas atenções para os fatos
imediatos da vida e aquela imagem foi se dissolvendo na minha mente, até se
transformar em uma lembrança longínqua como um sonho ou uma miragem provocada
pelo sol quente de um dia de verão nordestino.
Por fim, terminei por me voltar definitivamente à luta árdua pela
sobrevivência, chegando até mesmo a admitir, em determinados momentos, a
utilização de algumas estratégias desabonadoras em nome das vantagens imediatas
que se ofereciam.
Verdadeiro ou não, aquele homem e a sua falação, foram gradativamente se
perdendo na névoa do tempo e do passado.
Recife, 2014
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