terça-feira, 6 de novembro de 2018

QUASE HISTÓRIAS: PÉ NO SACO

O fato de ser boa praça não impede ninguém de ser um chato de galocha – para usar uma expressão moderna, do tempo em que moças de família não “ficavam” (pelo menos era o que diziam para os pais). Quando muito, tiravam linha.
 
Foto: Cybercook
Ele se encaixava perfeitamente naquele perfil: boa praça, chato de galocha. Era amigo do pai, que o trouxe para trabalhar no escritório, onde eu também marcava ponto, com má vontade evidente. Odiava números. Até hoje odeio, minhas contas raramente fecham. Com o apoio do pai – apoio entusiasmado, diga-se –, ele insistia para que eu enfileirasse aquela montanha de números, de forma que não restassem dúvidas sobre quais eram os centavos, as centenas, os milhares e os milhões. Uma tortura. Queria ser diretor de teatro. Dei em nada.

Quase todos os dias, almoçávamos juntos, numa pensão em frente ao Shopping Iguatemi. Antes de sair, cumpria um de seus rituais prediletos: pegava a flanela e tirava o pó inexistente dos sapatos. No “restaurante”, havia duas mesas com seis cadeiras cada uma, se não me falha a memória. Era necessário esperar um pouco. Às vezes, muito. Enquanto isso, nós e os outros assistíamos ao noticiário esportivo.

Hora do rango. Arroz, feijão, salada e um bife para cada comensal. Ele era o mais franzino de todos. Mas era sempre o primeiro a se servir. E escolhia sempre, também, o bife maior, o que me matava de vergonha. Meu constrangimento era evidente. Até que um dia ele me explicou sua lógica:

-- Ora, todo mundo, por educação, tende a não pegar o bife maior. Já resolvo a parada logo de saída. Se ninguém vai pegar, pego eu. Ganha-se tempo.

Terminado o almoço, lá íamos nós dois de volta para o escritório. E ele passava de novo a flanela nos sapatos e me aporrinhava para que enfileirasse os números de maneira que ninguém tivesse dúvidas sobre quais eram os centavos, as centenas, os milhares e os milhões.


(Publicada originalmente em 24/11/2013. Com o título "A lógica do Rubinho")

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