Iracema não tem boca pra nada - aliás, nunca teve. Suporta tudo calada.
Quando excepcionalmente reage, não consegue dormir. No dia seguinte, não
sossega enquanto não pega o telefone e se desculpa com irmãos e cunhadas, ainda
que eles não tenham razão. Com os dois cunhados nunca se aborreceu. Nem poderia. Um e
outro jamais aparecem por lá: na casa em que ela e irmãos nasceram e se
criaram. Todos irmãos cuidaram de si; ela, dos pais.
Continua virgem, mas nunca teve lábios de mel, conforma-se. Com o tempo engordou
um bocado. Às vezes, conversa por telefone com uma amiga do ginásio. Ao cinema,
foi meia dúzia de vezes, se tanto. Ao teatro, apenas uma vez. Viajou bastante
quando era criança e o pai ainda tinha saúde. Depois, miau. Gosta de televisão,
em especial dos programas de culinária. Acha que as moças de hoje são muito assanhadas,
talvez mais que os rapazes de seu tempo de guria.
Quando o pai morreu, há dez anos, combinou com a mãe que viajariam
bastante. A velha ficou de pensar. Não deu tempo. O Alzheimer mostrou suas
garras. Mas, como já foi dito, Iracema não reclama. Ao contrário. Pede a Deus
forças para cuidar da mãe. É grata ao Senhor por Ele ter colocado Tiana na vida
dos Silva, há vinte anos. Para Iracema, mais que empregada, Tiana faz
parte da família, é amiga, solidária, pau pra toda obra.
Os irmãos, de tempos em tempos, visitam a mãe. Trazem sempre algum
doce, balas de preferência, coisas assim. Mas não esquentam cadeira, todos muito
atarefados. A caçula é a que menos aparece, mas, em contrapartida, liga todos
os dias, três vezes ao dia, de segunda a segunda, para saber como mamãe está. E
fazer cobranças indiretas: cuidaram disso? Cuidaram daquilo? Acho que vocês deveriam fazer assim e não assado.
Tiana, que não tem papas na língua, não esconde sua irritação com a corja, como ela costuma chamar
todos da família Silva que não moram naquela casa:
-- Iracema, seus irmãos são uns vagabundos. Não estão nem aí com
você e sua mãe. Não ajudam em nada, são incapazes de levar dona Isaura ao
médico. Aparecem ou telefonam apenas para nos aborrecer. Se eu fosse você,
mandava todos eles enfiarem as balinhas que trazem...
-- Tia-a-na.
-- Me desculpe, sei que você não gosta de palavrões. Se não tem
coragem de mandar essa gente pro inferno, deixa comigo.
-- Tiana: é minha cruz. Se brigar com eles, é pior. Mamãe ficará triste. E isso eu não quero.
(OS - agosto/2016, atualizado em março de 2019)
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