Dizem
os tratadores de almas e mentes que, para viver em paz consigo mesmo, o sujeito
tem que se aceitar como ele é. Viver em paz é uma coisa. Ser feliz é outra –
coisa que só a turma da Xuxa, salvo engano, consegue ser. Aceitar-se exige
paciência e dinheiro. Passar metade da vida estirado no divã a confessar o
inconfessável é empreitada para valentes. Não precisei dos préstimos de
analistas. Passei a me aceitar melhor por absoluta falta de opção. Aos poucos,
por desastrado completo, fui sendo impedido de fazer tarefas para as quais
jamais tive aptidão e saco. O problema é que, no início, me sentia humilhado.
Afinal, era o homem da casa – e, como se sabe, homem da casa não escolhe nem
recusa tarefa.
Sempre
tive grandes dificuldades para, por exemplo, trocar aquela pecinha de torneira
– cujo nome agora me escapa. A falta de coordenação motora, que muitos atribuem
ao fato de não ter cursado o jardim da infância e o pré-primário, me atrapalhou
um bocado, a ponto de me impedir de unir as pontas de dois fios e passar a fita
isolante na maldita emenda. Trocar lâmpada nunca foi problema. O problema
continua sendo subir os degraus. Tenho problema com altura. Escalo um degrau,
dois degraus e, no terceiro, fico mais tonto que o habitual. Nunca me recusei a
trocar pneu de carro. Desde que tenha alguém para me colocar os parafusos nas
porcas, que insistem em brincar comigo de esconde-esconde.
A
lista de minhas impossibilidades é vasta.
No
começo, me sentia inferior a outros homens do lar. Ficava amuado quando me
comparavam aos que consertam fechaduras, põem óleo nas janelas engripadas,
trocam o botijão de gás, aparam grama, pintam o portão da garagem etc. Nunca
soube fazer nada disso. Mas hoje vejo que minhas inutilidades não são de todo
inúteis. Dou de ombros às gozações, e me estiro no sofá. Já não quero saber
para quê sirvo. Essa preocupação passou a ser de minha mulher:
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Não te largo, sem descobrir sua utilidade, diz.
Nosso
casamento vai longe. Se nem eu sei minha utilidade...
(Atualizado em março de 2019)