sexta-feira, 8 de junho de 2018

QUASE HISTÓRIAS: O CEGUETA DO BAIRRO

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Ilustração: Deposiphotos



Míope que só, Fernandinho devia ter nascido com óculos. Mas, até o momento de se apresentar ao Exército para o alistamento obrigatório, ele não tinha noção do quanto enxergava mal. Até então, para Fernandinho, as coisas da vida e as pessoas eram assim: todas nebulosas, meio embaçadas, quase sem graça.

O caldo entornou de vez, quando teve que fazer exame para obter a carteira de habilitação - sonho de consumo da moçada da época, passaporte (quase) obrigatório para conquistar uma namorada bacaninha. Naquela época, as meninas mais interesseiras – e interessantes – eram chamadas de “gasolina”. Só saiam com quem tinha ao menos um carrinho. No dia do exame de vista, Fernandinho não conseguiu avistar a placa com as letras; as letras, então, nem pensar. Tomou um baita esporro do oculista, como se fosse o culpado por sua deficiência visual.

Fernandinho topava tudo para ganhar o direito de dirigir o Fusca que a avó paterna lhe dera - menos uma coisa: usar óculos com lentes de fundo de garrafa, como os que mãe e pai usavam. Temia ser chamado de cegueta. Que diabos! Tinha feito regime, adquirira cintura de toureiro espanhol; seus cabelos eram lisos, longos e sedosos. Não era lindo, mas também não assustava ninguém. Óculos com lentes grossas e esverdeadas? Não, não e não. Nem pensar.

Não se tem notícia de que alguém tenha sofrido tanto para se adaptar às lentes de contato como ele. Vivia com os olhos vermelhos e lacrimosos. Não foram poucos os que o tomaram por maconheiro. Paciência. Depois de alguns anos, ele se adaptou às malditas lentes. Décadas depois, porém uma grave doença ocular lhe roubou o sonho - e lhe presenteou com os malditos óculos.

A miopia, como se sabe, deixa sequelas, afeta a personalidade das pessoas. Nosso herói não passou incólume pelo infortúnio de enxergar mal.

Há dois tipos básicos de míopes. Uns são sorumbáticos, andam sempre de cabeça baixa, falam pouco e num tom inaudível, não cumprimentam ninguém. Alguns os tomam por intelectuais e/ou arrogantes.

Outros míopes são o exato oposto. Expansivos, na dúvida, eles cumprimentam com entusiasmo tudo e todos que atravessam seu caminho nebuloso - de desconhecidos a postes, passando, claro, por manequins de lojas. Como abanam as mãos, os danados.

Fernandinho engrossou o time dos alargados. Hoje, já homem velho, ainda convive com os fantasmas das lentes de fundo de garrafa. Não há quem não o conheça no bairro onde nasceu, criou-se e, salvo engano, vai dormir de sapatos. Basta sair às ruas, para que todos comentem: "Lá vem o velho cegueta e idiota, o que abana para todo mundo". Fernandinho morde-se por dentro. Mas fazer o quê?

Por Orlando Silveira - Maio de 2018


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