domingo, 3 de dezembro de 2017

AO MENOS, UM FARDO A MENOS



Nem ele sabia por que corria tanto, desassossego sem fim, impaciência de anos, de uma vida inteira.

Anos e anos de terapia – sejamos francos – não lhe serviram para nada, como quase sempre acontece com todo mundo. Gastou fortuna, as frustrações ganharam corpo, medos antigos foram substituídos por outros mais vigorosos.

Na essência, Alfredo continua o mesmo: inseguro, ansioso, certo de que o mundo acabará amanhã, ou a qualquer momento, como sempre dizia sua mãe. Obsessão: como lidar com amanhã, se amanhã (ou a qualquer momento) não haverá mais mundo. Daí, a necessidade de querer fazer já, para ontem, tudo, não importa o quê.

Anos e anos de sofrimento e despesas. À toa.

Um dia, muito tempo depois, de bolsa cheia, a terapeuta abriu o jogo:

-- Alfredo: se você acha que o mundo vai acabar a qualquer momento – e não há quem tire essa bobagem de sua cabeça --, por que correr tanto, para que fazer isso ou aquilo, se amanhã aquilo e isso não terão sentido algum, já que não haverá mais mundo?

Caiu a ficha.

-- Por que a senhora levou tanto tempo para me dizer o óbvio?

-- Você não estava preparado para ouvir a verdade.

Alfredo pensou em muitas coisas: exigir o dinheiro gasto com a terapeuta de volta, pequena fortuna, matar a doutora e família, exumar o corpo da mãe e cremar os ossos...

Achou melhor continuar correndo, sempre apressado, sem saber para onde nem por quê. Só que agora sem ter que pagar a conta da terapeuta. Ao menos, um fardo a menos.(02/12/2004 - ATUALIZADO EM 02/12/2017)

***

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Amar é... Amar é tudo. Até fazer comprinha imaginária no supermercado. (OS)


4 comentários:

  1. Parabéns pela excelente crônica, Orlando Silveira! As pessoas viciadas em terapia não mudam nunca a sua essência. Mudam, somente, "da boca pra fora",
    Um abraço.

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