![]() |
PÃES
E LIVROS
É
noite num cárcere úmido. Estamos em Sevilha, final do século 16.
A
cena é estranha: o todo-poderoso cardeal inquisidor interroga Jesus. Tenta
explicar ao Nazareno a necessidade imperiosa de queimá-lo num auto de fé.
Suprema contradição: como um oficial da Igreja Católica, formalmente dependente
de e fiel ao fundador, pode estar disposto a matar aquele a quem deveria
adorar?
Por
Leandro Karnal
Em “O
Estado de S. Paulo”
02/10/2016
A
história do inquisidor e de Jesus foi criada por Dostoievski. É parte da obra Os Irmãos Karamazov. Trata-se de uma
ficção dentro de outra ficção, signo de signo. O segundo irmão, Ivan, explica
seu conto ao mais novo. O benjamim é o mais religioso da família e ouve, entre
horror e interesse, a fantasia do intelectual ímpio.
Sim,
a segunda vinda de Jesus ocorria naquele lugar e naquele tempo. O Redentor
decidira por aparecer no sul da Espanha, no apogeu inquisitorial. Ainda que não
restassem dúvidas sobre a identidade real da personagem, o inquisidor mandara
prendê-lo. No cárcere, agora, procurava explicar sua ação.
O
foco da conversa (ou monólogo, já que só o cardeal fala) está no episódio das
três tentações de Jesus pelo demônio. O diabo ofereceu ao filho de Maria a
chance de matar a fome, desafiar a Divina Providência atirando-se ao solo de um
ponto alto e possuir o mundo ao custo da idolatria ao príncipe do Inferno.
Jesus recusou a tríplice oferta.
“O
bem imediato e material é mais desejável do que uma redenção futura. Jesus
clama por essência e coragem. A Igreja assegura aparência e medo: sem pão e
circo, não haverá público”
Dostoievski
ampliou o tema. O cardeal espanhol é um conhecedor da natureza humana. Alega
que o Cristo ignora o homem comum. Se Ele tivesse transformado as pedras em
pães, por exemplo, todos os degredados filhos de Eva teriam entendido,
claramente, que havia um milagre e um prêmio. As massas viriam, famintas, até o
Messias. Ao dizer o transcendente “não só de pão vive o homem”, Jesus dá uma
dimensão superior para a vida. Segundo o cardeal, o Messias formou uma religião
para poucos. Ao criar pecados, recompensas, tribunais e privilégios, a Igreja
Católica teria elaborado um projeto viável para milhões. O povo quer pão e não
elevação mística. Jesus teria apostado alto demais na espécie humana. Os homens
são materiais, egoístas, centrados no aqui e agora e pouco inclinados à
compaixão ou à metafísica. Jesus seria um idealista. A Igreja real, com sua
hierarquia e poder, seria o mundo possível. O Filho ofereceu a liberdade aos
homens, mas somos apegados aos nossos grilhões.
Quando
um partido político faz um comício, convida um cantor famoso. Durante a festa
do primeiro de maio, apartamentos são sorteados por centrais sindicais. Quase
todos os professores já fizeram provas difíceis para obter o controle de uma
turma. Em todos esses casos, a lógica do cardeal é vitoriosa. O visível atrai
mais do que o oculto. O bem imediato e material é mais desejável do que uma
redenção futura. Jesus clama por essência e coragem. A Igreja assegura
aparência e medo: sem pão e circo, não haverá público. Nossa filiação remete
mais ao príncipe eclesiástico do que ao carpinteiro.
“A
vida é árdua e nem sempre alegre. Algumas pessoas emocionam e outras
decepcionam. Um consolo poderoso e permanente: há livros pela jornada. Faça um
selfie da sua alma: leia um clássico”
As
obras Crime e Castigo e Os Irmãos Karamazov mudaram minha vida.
Lamento minha ignorância absoluta da língua russa. Li mais de uma tradução. A
leitura mais recente foi pela mão de Paulo Bezerra. Foi uma epifania, uma
revelação, uma luz que se acendeu e mudou minha maneira de estar no mundo.
Já
vivi a experiência do livro transformador com outros textos. Apenas para dar
alguns exemplos: Jó, na Bíblia; A Paixão Segundo G.H., de Clarice
Lispector, e, naturalmente, o Hamlet,
de Shakespeare. Confesso-me pouco original nos exemplos: também senti o impacto
com Dante e Cervantes, além de Machado de Assis. Li muitos livros. Porém,
apenas duas dúzias deles trouxeram uma luz ao final que, aportando o barco da
consciência à página derradeira, percebia-me atônito, feliz, impactado e,
algumas vezes, mudo entre lágrimas. As ideias haviam mudado de lugar. Fechado o
livro, eu era outro. Tinha sentimentos variados como raiva, amor, emoção. Uma
parte minha se rebelava porque o escritor genial me arrancara de um nicho e me
jogara ao vazio, ironizando minha percepção rasa da existência. Outra parte
pensava que a vida valia a pena por ter chegado consciente ao momento daquele
livro nas minhas mãos.
Um
livro forte provoca sentimentos fortes: vontade retórica de fazer uma genuflexão
diante do mistério do universo e da inteligência. Quanto melhor o livro, maior
o silêncio ao fim da obra. Em alguns casos, passei muitos dias sem poder ler
outra coisa porque ainda não tinha a força intelectual de passar para outro
degrau ao ter sido atingido pelo clarão de um autor brilhante. Tombei, a
caminho de Damasco, muitas vezes: Leandro, Leandro, por que me lês?
Dentro
de mim, habita um objetivo cardeal a lembrar que o pão é fundamental. O prelado
é encarado por outra voz: um Jesus mudo que sorri diante da banalidade das
coisas concretas e dos meus valores hipócritas. O universo é vasto. A vida é
árdua e nem sempre alegre. Algumas pessoas emocionam e outras decepcionam. Um
consolo poderoso e permanente: há livros pela jornada. Faça um selfie da sua
alma: leia um clássico.
![]() |
Leandro
Karnal é professor doutor na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), desde
1996. Graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS) e
doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Possui
pós-doutorados pela UNAM, México, e pelo CNRS de Paris. Sua formação cruza
História Cultural, Antropologia e Filosofia. É autor de vários livros.
| |
Nenhum comentário:
Postar um comentário