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ESCÂNDALOS SE
INCORPORAM
DESUMANAMENTE
AO COTIDIANO
Em
alguns lugares, a bala perdida foi assimilada;
faz
parte do ruído urbano como o pio dos pardais.
Banaliza-se
a morte
Por
Carlos Melo
21/07/2017
Vivendo sua quadra histórica mais
complicada, nessas duas semanas o país disfarça seus males e faz de conta que
tudo está bem. São as águas paradas do recesso, o cansaço da opinião pública, a
desatenção causada pelo frio; o remanso temporário das águas no mesmo lago onde
mora o monstro. Presidente, Michel Temer toca o bumbo: ''O país reencontrou o
rumo; está nos trilhos''. É do seu papel e sua alternativa: ao jogador de
poucas cartas cabe o blefe; olhar para mão pobre e sorrir como se repleta
estivesse de ases e reis.
Mas, o rumo é tortuoso e os trilhos
danificados. O que mais preocupa é a segurança pública. Alguém já assinalou
que, em alguns lugares, a bala perdida foi assimilada; faz parte do ruído
urbano como o pio dos pardais. Banaliza-se a morte. Há alguns meses, numa
dessas viagens que a profissão obriga, me perdi num desses subúrbios perigosos.
Apavorado, o motorista que me levava suava em bicas; dizia-me que, ali, o risco
era o ladrão e também a polícia. Frio, eu mantinha a calma dos ignorantes.
Tempos depois — de volta ao estado,
consciente dos riscos —, comentei o caso com um taxista; como se lhe contasse
uma aventura, falei dos caminhos porque havia me perdido. Com atenção, ele
ouvia sem abalos; parecia-lhe óbvio que na cidade houvesse áreas desse tipo e
que elas se expandissem. ''Está cada vez pior''. Nem o Waze é capaz de dominar
a sociologia das cidades. Por fim, filosofou: ''Às vezes, nada acontece''. Não
era ironia nem piada: tive sorte. A tragédia é, sim, o normal.
O estado em questão foi o Rio de Janeiro,
mas o episódio cabe em qualquer rincão do país. Simbólico, o Rio é apenas, na
federação, o doente em estágio mais avançado. De um modo geral, todos estão
quebrados, sem dar conta do custeio das máquinas públicas — quanto mais
investir para amenizar os efeitos da crise. À população resta se adaptar:
trancar as portas, cercar as casas, evitar as ruas. Medo que se banaliza ou é
neurose ou é covardia — a covardia nossa de cada dia.
O escândalo se incorpora desumanamente ao
cotidiano como um poste sem vida. Evidente que, ao chegar à segurança pública,
a crise já tomou várias outras áreas. Saúde, educação, promoção social; ética e
moralidade pública. Tudo se resume a uma espécie de muro pichado, numa rua
abandonada à qual todos incorporam ao caminho; o rumo de que fala o presidente
Temer. Tem sido assim.
CARLOS MELO/DIVULGAÇÃO |
A maior preocupação de muitos analistas se
volta para a saúde das contas públicas. Não deixa de fazer sentido, em tese. O
raciocínio é conhecido: sanear as finanças do Estado, fornecendo confiança para
investimentos privados, que trariam empregos e crescimento econômico; aumentos
de arrecadação facilitariam investimentos em segurança, saúde e educação:
circulo virtuoso, desenvolvimento social. Tudo muito simples. Em tese.
Nesse sentido, justificam-se os aumentos de
impostos diante das condições fiscais, mas também pela manutenção de
importantes políticas públicas. Seria mesmo inevitável.
Os impostos, no entanto, vieram após o
aumento dos salários de parcelas do funcionalismo, o perdão ou refinanciamento
de dívidas, liberações de emendas e cargos às mancheias para garantir o
claudicante mandato do presidente. Reforma da previdência, com manutenção de
aposentadorias especiais; modernização trabalhista com preservação do imposto
sindical. Que sentido há nisto além do poder dos grupos de pressão?
O que fazer está nos livros-texto dos
melhores cursos de economia. Como fazê-lo nenhum manual ensina. O longo prazo é
uma esperança para depois de depois de amanhã; não raro, se lhe perde de vista.
A vida concreta e o desespero da vida se dão no hoje e no agora: é preciso
Políticas pra já. Depois, é sempre
tarde. Na verdade, é cruel: jogar água fria na manhã gelada dos que dormem na
rua demonstra a estupidez humana em seu grau mais elevado. Prêmio Barbárie. Nem
às vezes isso pode dar certo.
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Carlos Melo, cientista político. Professor
do Insper.
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