Flávio Assis - Entrevista Exclusiva
A sonoridade de Flávio Assis pode ser analogamente comparada a uma espécie de rio, que constituído por um percurso bastante peculiar, deságua em uma gama de ritmos e influências agradavelmente abrangentes. Os principais afluentes desse rio são, sem sombra de dúvidas seus pais, que souberam como poucos substanciar a musicalidade do artista e com essas características destacáveis que o cantor e compositor vem atualmente na estrada divulgando o seu segundo álbum intitulado "Feira Livre", que conta com a adesão do também cantor e compositor Roberto Mendes assinando a produção. Flávio, apresentado ao público do Blog do Lando ao longo da semana passada através da pauta FLÁVIO ASSIS APRESENTA UMA FEIRA IMBUÍDA DE RITMOS E BRASILIDADE se dispôs gentilmente a nos conceder essa entrevista exclusiva onde aborda dentre outros temas sob o impacto que o atingiu na primeira audição do álbum "Expresso 2222" do Gilberto Gil e como conheceu o cantor e compositor paraibano Chico César, que participou do seu primeiro álbum "A cor da noite", lançado por Assis em 2009.
A primeira pergunta trata-se na verdade de uma curiosidade: quais as suas maiores e mais remotas reminiscências do seu envolvimento com a música?
Flávio Assis - As lembranças mais recônditas da minha relação com a música estão, fortemente, arraigadas à minha mãe, Dona Eliene. Lembro-me, criança, tentando acompanhar, cantando, as inúmeras canções que desabrochavam da sua vitrola. Também tem papel importante a cidade de Salinas da Margarida, no Recôncavo Baiano (onde morava meu avô materno, Seu Basílio, e onde eu passava minhas férias escolares). Foi lá onde eu ouvi, pela primeira vez, o som inconfundível dos tambores sagrados do Candomblé (rum, rumpi e lé)... Soavam-me como algo mágico, e eu me espreitava entre os adultos para assistir às cerimônias, alguns ritos públicos e, principalmente, suas festas. Meu avô, Seu Basílio, que tocava modas no cavaquinho também me instigava musicalmente. Foi em Salinas que eu conheci o samba-de-roda, as mulheres sambadeiras, os cânticos e toda magia rítmica deste patrimônio imaterial do povo brasileiro. No bairro onde cresci em Salvador, na década de 1980, o Cabula, convivi com uma pessoa que foi fundamental na minha relação com o violão, o Seu Gerson (que o considero como um segundo pai, para mim). Com ele descobri e me apaixonei pela minha maior influência musical, o Gilberto Gil. Ele tocava quase tudo do mestre baiano, sensacional! Seu Gerson foi quem, também me apresentou o universo lírico-harmônico, fabuloso, da Cantoria de mestres como Elomar, Vital Farias, Renato Teixeira, Xangai, Geraldo Azevedo e o piauiense, radicado em Goiás, Francisco Aafa. Agora, imagine todo esse caldeirão na cabeça de uma criança de 11 anos, já pensou? Considero-me um privilegiado!
Sua mãe Dona Eliene foi de extrema importância para a sua formação musical principalmente a partir da coleção de discos que ela possuía. A influência dela restringia-se apenas na questão da audição ou ela também dominava algum instrumento que acabou influenciando-o de certa forma assim como o seu pai?
FA - Diferente de meu pai, Seu Assis, minha mãe não tocava nenhum instrumento musical. O gosto eclético pela música, a forma “desavergonhada” com que ela, sem o menor constrangimento, punha um LP de Maria Bethânia para tocar e em seguida, Raul Seixas, o pernambucano Reginaldo Rossi, The Fevers e, pra fechar, Stevie Wonder, já pensou? Esse foi um dos seus maiores legados na minha formação, para muito além do artista que me tornei, mas do homem, do cidadão. Olhar para o mundo despido de pré-julgamentos, das amarras estéticas, tão inúteis. Fundamental!
Apesar de você ter passado por uma escola de música talvez tenha como grande formadora de sua arte as experiências noturnas em bares e espaços culturais de Salvador. Há algo que seja evidente nas canções de seus discos e que tenha sido assimilado desse período em que você tocou na noite?
FA - Não considero profunda, tampouco extensa, a minha relação com a “noite” nos bares da minha cidade natal, confesso. Fiquei pouco tempo inserido neste contexto, mesmo porque, em paralelo à música eu tive uma outra formação profissional, a de geógrafo, que me conduziu para a sala-de-aula, como professor da disciplina na Educação Básica. Aliás, profissão que ainda agora exerço, deus sabe até quando! Mas, claro que desse período tocando na noite ficou como herança, sem dúvida alguma, a plasticidade diante do repertório musical. Tocar na “noite”, exige muito da capacidade de diversificação do artista, não apenas com o repertório, mas com as sonoridades, timbres e interpretação, por exemplo.
Tanto nas letras quanto nas melodias o continente africano se faz bastante presente em seu trabalho. Esses aspectos parecem presentes em você de maneira muito arraigada. Deixe agora o geógrafo de lado e responda: nesta questão sonora a pangeia é algo ainda existente?
FA - Gostei dessa imagem, “pangeia sonora”, muito ilustrativa! Sim. Como artista, sou produto de um mosaico musical substancial, que permeia toda minha trajetória, como já disse anteriormente. Todas essas sonoridades não se traduzem em mim apenas como potência, mas estão presentes em amálgama, transfiguradas em mim, representam o meu “ethos musical”. Este “ethos” se traduz na minha condição de homem negro, pois ter na pele, “a cor da noite”, em nossa sociedade, é uma condição política. Tudo isso se reverbera, obviamente, na minha percepção de mundo, assentada sobre bases, ética, moral, espiritual, cultural e filosófica, de matriz africana, indelevelmente. Contudo, esta perspectiva pan-africanista desabrochou em mim, por volta dos meus 18 (dezoito) anos, quando lembro me apropriar de forma mais consciente deste tema. Então, no meu caso, com licença do neologismo, em mim o continente africano foi “(re)pangelizado”, por assim dizer, à minha existência.
Você vem trilhando uma carreira de maneira independente bastante interessante. Nos dois álbuns que foram lançados até então o reconhecimento pelo seu esforço não tem deixado de acontecer, tanto que no Prêmio da Música Brasileira deste ano você teve seu trabalho dentre os pré-selecionados. Qual a maior dificuldade em seguir um caminho alternativo dentro da música como este que você vem traçando?
FA - As dificuldades são inúmeras. Desde os obstáculos para inserção nas rádios à circulação do próprio trabalho. Com exceção da radio pública, aqui na Bahia, as demais obedecem a uma lógica mercadológica muito clara na sua grade de programação, a famosa máxima do “jabá”. A circulação, divulgação e distribuição, por exemplo, se dão majoritariamente a partir das redes virtuais. O advento da internet redimensionou o lugar e o papel da música independente em todo mundo, se instituindo como canal difusor importantíssimo, pôs em xeque a velha ordem das gravadoras e dos seus executivos. Na minha trajetória a internet tem sido imperativa do ponto de vista da divulgação e circulação do meu trabalho. Esse “bate-papo”, aqui no Blog do Lando, é um grande exemplo disso, ademais nos conhecemos na rede. Há mais ou menos uma semana, o CD Feira Livre passou a ser tocado em 10 (dez) rádios de Portugal, porque um produtor local assistiu ao show em Salvador e articulou, via rede, a inserção do trabalho nas mesmas. A distribuição do CD em formato digital, também é um grande exemplo. Tem aparecido compradores de diferentes partes do mundo, com os ouvidos curiosos para o trabalho, isso é muito bom!
Conte-nos acerca da sua aproximação com o Roberto Mendes e como surgiu o convite para que ele viesse a produzir este seu trabalho mais recente?
FA - Em primeiro lugar, eu sou um fã entusiasta da obra do Roberto Mendes, que é ímpar na Música Brasileira. Trabalhar ao lado do meu ídolo teve um sabor muito especial. Conheci o Roberto em 2008, à época da divulgação do seu livro “Chula: comportamento traduzido em canção” e do CD homônimo, uma verdadeira pérola, pouco conhecida do grande público, infelizmente. Então em 2010, estreei o show “Canção é mar”, onde tive a honra de tê-lo como convidado especial. A partir desse encontro passamos a nos falar com mais freqüência, o que nos permitiu nutrir uma amizade. Então, em junho de 2011, fui visitá-lo na sua casa em Santo Amaro da Purificação, para um papo, conselhos e claro, saborear uma legítima maniçoba. Foi desse encontro que surgiu a ideia de produzirmos um novo disco. Engraçado, porque a proposta inicial era muito diferente do resultado final. Roberto imaginou um disco muito próximo da sonoridade acústica, explorando o meu violão e as informações percussivas que minha forma de tocar o instrumento sugere. Mas aí surgiu o imponderável da condição humana, que é a inventividade, a capacidade eminentemente humana de (re)criar, (re)inventar, (re)elaborar , o que é fundamental na arte. Digo isso, porque os músicos/amigos envolvidos foram protagonistas desse processo. Tedy Santana (bateria), Cuca (percussão), Bóka Reis (percussão), Gustavo Caribé (baixo), Alex Mesquita (violão folk e guitarra), que arranjou, produziu e enviou as trilhas da sua participação de Los Angeles, com muito carinho e competência. Jurandir Santana (viola), Paulo Mutti (violão folk e guitarra), Jelber Oliveira (sanfona), Duarte Velloso (guitarra) e Dinho Filho (programação, edição e mixagem do disco). Enfim, uma turma da “pesada”, que tive a honra e o privilégio de trabalhar e compartilhar a minha arte com eles.
Em seu mais recente disco “Feira Livre” é bem perceptível características da sonoridade existente no recôncavo, tanto que já na primeira audição algo me remeteu, por exemplo, a saudosa Edith do Prato, que coincidentemente também foi produzida pelo Roberto Mendes. Esse tipo de sonoridade vem naturalmente devido as influências das fontes das quais você bebeu ou de certo modo tem a interferência do Roberto?
FA - Acredito que o disco “Feira Livre” seja um produto das duas coisas. As minhas influências já mencionadas de uma lado e o Roberto do outro, perfeitamente congruentes. Por exemplo, quando ouvi pela primeira vez “Expresso 2222”, do mestre Gilberto Gil, foi muito forte! A batida, o swing, a ginga, o “resfolego” e o “groove”, traduzidos no violão marcante de Gil, foram como uma grande revolução na cabeça de um menino de 11 (onze) anos, que ensaiava os primeiros acordes ao violão. Aquela sonoridade era e é Recôncavo em estado puro e, ao mesmo tempo, também é Luiz Gonzaga, é Jackson do Pandeiro, porque essas referências foram forjadas a partir de uma matriz negra e africana, tão bem traduzida na região do Recôncavo Baiano. Roberto Mendes representa para mim e toda uma geração de músicos na Bahia e no Brasil, em geral, a decodificação da trama rítmico-melódica que se constitui a chula, o embrião do grande produto genuinamente brasileiro, o samba. Por sua vez, o próprio Roberto já é o resultado de matrizes muito caras, como Dona Edith do Prato, que você muito bem citou, Dona Dalva de Cachoeira, os mestres tocadores, Seu João do Boi, Seu Alumínio e Seu Zé de Lelinha, por exemplo. Então o disco “Feira Livre”, é filho dessa profusão musical, cultural, simbólica e, fundamentalmente, comportamental. Nas palavras do mestre Roberto Mendes, o disco se transformou em uma “quermesse cultural”.
Como se deu a participação do Chico César no álbum “A cor da noite”, de 2009, seu disco de estreia?
FA - Conheci o Chico em 2006, em São Paulo. À época estive na capital paulista para o estabelecimento de redes e a realização de cinco shows e, coincidentemente, ele estava lançando o seu álbum, “De uns tempos pra cá”, em parceria com o “Quinteto da Paraíba”, que na minha modesta opinião, é o melhor da obra do mestre paraibano, uma obra basilar da Música Brasileira, genial! Então, ao final de 2008 quando iniciei o processo de pré-produção do disco “A Cor da Noite”, foi imediata a associação com o Chico, surgindo o convite, que ele topou de imediato. Fiz a pré-produção da faixa em Salvador e gravamos a voz do Chico no seu estúdio, em São Paulo. O Chico César é um artista raro, desses que já não surgem mais, com um senso crítico, uma percepção de mundo e de vida apuradíssima, uma grande figura humana. Sou fã do Chico, também uma grande Escola para mim.
Gostaria que, se possível, você discernisse o que podemos observar como principais características existentes entre este seu álbum atual (“Feira Livre”) e o que o antecedeu (“A cor da noite”). Àqueles que só tiveram a oportunidade de ouvir o mais recente o que pode encontrar como características nele que de certo modo remete ao trabalho anterior?
FA - Ao contrário do “Feira Livre”, cuja produção se deu de forma mais espontânea, com forte influência da percepção de cada músico envolvido no processo, o disco “A Cor da Noite”, produzido por mim e o baixista baiano, Gilmário Celso, foi inteiramente arranjado. Neste primeiro trabalho, cada nota musical ali registrada foi arranjada. Se por um lado este aspecto se traduziu em uma estética harmoniosa, muito bem elaborada, por outro engessou a possibilidade do trabalho se (re)inventar, porque estava preso aos ditames do arranjo. O disco “A Cor da Noite”, é fundamentalmente temático, a partir do referencial africano. Os arranjos foram concebidos a partir da referência polifônica da música contemporânea de África, a partir dos trabalhos de artistas como, Salif Keita, Youssu N’Dou, Morkta Samba, Richard Bona, Manecas Costa, Angelic Joe, Habib Koité e outros. Isso aparece muito intencionalmente no trabalho, foi uma escolha consciente do processo de produção do disco. O “Feira Livre”, é diferente, é mais solto, mais espontâneo, eu me reconheço mais inteiro, mais maduro obviamente. O disco “A Cor da Noite” ele está disponível, na íntegra, na nossa página no MySpace e ainda é comercializado, aqui em Salvador, em lojas especializadas.
Como tem sido feita a divulgação do álbum “Feira Livre”? Você tem percorrido o Brasil ou esse trabalho a princípio restringe-se apenas à Bahia?
FA - Agora no segundo semestre estamos com agenda prevista para São Paulo e Rio de Janeiro, para circulação do disco, o que deve ser uma tendência cada vez mais natural do trabalho, à medida que Salvador, infelizmente, é pouco favorável à produção artística independente, por diversos fatores.
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