sexta-feira, 4 de agosto de 2017

QUASE HISTÓRIAS: FÉ MIÚDA


Verdade seja dita: ao longo da vida, Tonico jamais escondeu sua condição de agnóstico. Lá pelos vinte e tantos anos, envolvia-se em discussões infindáveis e rudes com aqueles que se confessavam religiosos, tinha paciência zero com todos os adeptos de quaisquer santos. Lá pelos quarenta e poucos anos, começou a mudar, já não entrava em polêmicas, dava de ombros, deixava pra lá, sorriso superior nos lábios. Que cada pessoa acreditasse no que bem entendesse – desde que não lhe aporrinhasse com cantilenas, evidentemente.

Aos sessenta, a mulher de Tonico saiu de casa, foi morar com um dos filhos, que, aliás, nunca vinham visitá-lo, mesmo antes da mudança da mãe. Tonico recuperou a ira dos vinte e tantos anos. Tentou driblar a solidão, a catarata e os problemas cardíaco-pulmonares com doses generosas de destilados. À noite, em casa, passava horas olhando o revólver que jamais usara. Um dia, vestiu-se com certo esmero, lustrou os sapatos e saiu.

Zanzou um bocado pelas ruas do bairro. Entornou paratis, engoliu qualquer salgadinho para driblar a fome inexistente e, finalmente, sentou-se num banco em frente à igreja. Ali ficou por bom tempo, vendo o nada passar. Depois, olhou para um lado, para outro. Certificou-se de que nas redondezas não havia conhecido algum. Então, ele entrou na igreja vazia. Fez o sinal da cruz. Ajoelhou-se. E pediu a Deus que aumentasse sua fé miúda. (Fevereiro/2016 -OS)

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