Ilustração: Deposiphotos |
Míope que só, Fernandinho devia ter
nascido com óculos. Mas, até o momento de se apresentar ao Exército para o
alistamento obrigatório, ele não tinha noção do quanto enxergava mal. Até
então, para Fernandinho, as coisas da vida e as pessoas eram assim: todas
nebulosas, meio embaçadas, quase sem graça.
O caldo entornou de vez, quando teve
que fazer exame para obter a carteira de habilitação - sonho de consumo da
moçada da época, passaporte (quase) obrigatório para conquistar uma namorada
bacaninha. Naquela época, as meninas mais interesseiras – e interessantes – eram
chamadas de “gasolina”. Só saiam com quem tinha ao menos um carrinho. No dia do
exame de vista, Fernandinho não conseguiu avistar a placa com as letras; as
letras, então, nem pensar. Tomou um baita esporro do oculista, como se fosse o
culpado por sua deficiência visual.
Fernandinho topava tudo para ganhar o
direito de dirigir o Fusca que a avó paterna lhe dera - menos uma coisa: usar
óculos com lentes de fundo de garrafa, como os que mãe e pai usavam. Temia ser
chamado de cegueta. Que diabos! Tinha feito regime, adquirira cintura de
toureiro espanhol; seus cabelos eram lisos, longos e sedosos. Não era lindo,
mas também não assustava ninguém. Óculos com lentes grossas e esverdeadas? Não,
não e não. Nem pensar.
Não se tem notícia de que alguém tenha
sofrido tanto para se adaptar às lentes de contato como ele. Vivia com os olhos
vermelhos e lacrimosos. Não foram poucos os que o tomaram por maconheiro.
Paciência. Depois de alguns anos, ele se adaptou às malditas lentes. Décadas
depois, porém uma grave doença ocular lhe roubou o sonho - e lhe presenteou com
os malditos óculos.
A miopia, como se sabe, deixa
sequelas, afeta a personalidade das pessoas. Nosso herói não passou incólume
pelo infortúnio de enxergar mal.
Há dois tipos básicos de míopes. Uns
são sorumbáticos, andam sempre de cabeça baixa, falam pouco e num tom inaudível,
não cumprimentam ninguém. Alguns os tomam por intelectuais e/ou arrogantes.
Outros míopes são o exato oposto.
Expansivos, na dúvida, eles cumprimentam com entusiasmo tudo e todos que
atravessam seu caminho nebuloso - de desconhecidos a postes, passando, claro,
por manequins de lojas. Como abanam as mãos, os danados.
Fernandinho engrossou o time dos
alargados. Hoje, já homem velho, ainda convive com os fantasmas das lentes de
fundo de garrafa. Não há quem não o conheça no bairro onde nasceu, criou-se e,
salvo engano, vai dormir de sapatos. Basta sair às ruas, para que todos
comentem: "Lá vem o velho cegueta e idiota, o que abana para todo mundo".
Fernandinho morde-se por dentro. Mas fazer o quê?
Por
Orlando Silveira - Maio de 2018
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