quinta-feira, 27 de junho de 2019

QUASE HISTÓRIAS: A BIQUEIRA

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Foto: Arquivo Google


Os vizinhos de longa data estavam inconformados. Vladimir, filho de dona Maria e de seu João, casal querido no bairro, voltara a ser internado na véspera, menos de dois meses após ter saído da clínica de tratamento para alcoólatras e dependentes químicos. Com 25 anos de idade, Vladimir tem um caminhão de bagunças e internações (seis, com a atual) nas costas. Seu currículo não lhe serve para nada, mas sua folha corrida lhe fecha todas as portas. 

Desde pequenino, o filho de dona Maria e de seu João consome em doses industriais cachaça ordinária, crack, cocaína e tudo mais que lhe aparecer à frente. Para tanto, não mede esforços: furta, rouba, trafica, suborna policiais, falsifica cheques etc. Vendeu diversos objetos dos pais, passou nos cobres a motocicleta do irmão caçula, dublê de entregador de pizza e oficce boy. Afinal, o vício em primeiro lugar. Ainda não caiu nas garras da Justiça, mas está jurado de morte por mais de um traficante.

A vida de Vladimir fora das clínicas tem rota conhecida: casa - bar - biqueira; biqueira - bar - casa. Frequentemente, some por duas, três semanas. Faz da cracolândia seu amargo lar. Quando retorna, está em petição de miséria. Dona Maria e seu João nunca sabem se ele está vivo ou morto. Os velhos já não acreditam em recuperação. A razão que os leva a reinternar o filho é evitar que ele morra de overdose, de bala de bandido ou de tiro de polícia.

As recaídas de Vladimir são cada vez mais intensas. Quando sente o peso da barra, ele pisa no acelerador: bebe, cheira e fuma sem descontinuar. Não há quantidade que satisfaça sua fissura. Então, ele furta, rouba e trafica no mesmo ritmo alucinante. Inconscientemente, ele força para ser internado. Nas clínicas, em pouco tempo, passa a comer feito leão (a falta de drogas precisa ser compensada de alguma maneira), ganha peso, exibe seus conhecimentos sobre os doze passos e as reuniões dos Narcóticos Anônimos. Vive a repetir, em alto e bom som, orações e expressões como "Glória a Deus" e "Aleluia". 

Brincalhão, não reclama de nada, faz da clausura involuntária um spa para gente de posses poucas, como ele e família. Nos cultos evangélicos, canta, toca violão, lê a Bíblia, simula entrar em transe ante "a palavra do Senhor". Participa ativamente dos shows da fé. Nos momentos de orações que precedem as cinco refeições diárias, agradece a Deus por ter lhe enviado a uma "casa como esta". Amém. 

Não há dia em que o filho de dona Maria e seu João não repita "n" vezes que está recuperado - muito embora não se esqueça da cachaça, da cocaína, do crack e da maconha. Adora funk e tatuagem. Diz para quem se dispõe a ouvi-lo que não sossegará enquanto não cobrir todo corpo com imagens de muitas cores e formatos. 

Terminada a internação, Vladimir volta para casa com muitos quilos a mais. Por economia e estratégia de marketing, as clínicas de recuperação - que na verdade recuperam poucos (segundo a Organização Mundial da Saúde, só 3%, em média, não voltam a reincidir) - abusam dos carboidratos. Quem era pele, osso e pó vira gorducho. Ainda que não queira. Muitos ainda acreditam que bochechas vermelhas e sobrepeso são sinônimos de saúde. 

Vladimir não foge à regra. A exemplo de seus companheiros de infortúnio, diz que a atual será sua última internação, que não voltará mais para um lugar daqueles, que já planejou uma nova vida, que nunca mais decepcionará mãe e pai, que quer cuidar do filho pequeno etc.  Mas, antes de  colocar em prática seus muitos planos, vai dar um instantinho no bar e uma passadinha na biqueira. Para dar adeus à velha vida. 

Por Orlando Silveira
Atualizado em julho de 2019 




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