Ninguém conseguia entender aquele desassossego diuturno do pai.
Justo ele, sempre sereno, quase monge. Não tinha boca para reclamar de nada. Aposentado,
passava horas e horas lendo seus inúmeros livros. Quem se irritava era a mãe,
que gostava mesmo de conversar. Ela dizia que não tinha companhia, que aquilo
não era vida, coisas do tipo.
O pai, para surpresa de todos, foi-se transformando num homem
irritadiço. Passou a reclamar de tudo: do sofá da sala, do colchão, das
cadeiras da cozinha. No apartamento da praia, era a mesma coisa. Queria trocar
todos os móveis, algo descabido. Tudo e creio que todos também lhe aborreciam. Já
não tinha a mesma paciência para com os livros.
O médico da família não dera conta do recado. Gastou-se uma fortuna
com um geriatra tão famoso quanto picareta. E nada. O terceiro doutor também
não resolveu, mas pelo menos teve uma serventia: pediu ao pai que fizesse
hidroginástica. Uma fisioterapeuta da clínica foi direto ao ponto: era bom
levá-lo a um neurologista. Àquela altura, após vários tratamentos, o pai só
fazia piorar. Cada vez mais impaciente e trêmulo, relutou em seguir a sugestão,
não acreditava mais nos médicos. Mas acabou indo à médica.
A neurologista lhe pediu uma série de exames, para medir o tamanho
do estrago já feito pela doença: Parkinson. Ela lhe receitou alguns
medicamentos. Visivelmente aborrecido com o diagnóstico, o pai não queria parar
na drogaria naquela noite. Foi voto vencido.
Duas horas depois de chegar em sua casa, o filho foi avisado de que
o pai ligara, queria falar com ele:
- Filho: já tomei os remédios da noite. E me sinto bem mais tranquilo e
desembaraçado, acho que vou dormir bem nesta noite. Milagre.
Naquele final de segunda-feira, pai, mãe, filho, filha e nora,
todos, enfim, choramos de alegria. Mesmo sabendo que não haveria cura.
(OS – Atualizado em abril de 2019)
LEIA TAMBÉM
MEMÓRIAS DO PARKINSON (I)
O pai não queria mais o cobertor, queria mudar de lado, queria ficar sentado, queria tomar água, queria o cobertor de novo e mudar de lado também, queria tirar a fralda, não estava na hora do café, não? Por Orlando Silveira
https://orlandosilveira1956.blogspot.com/2019/03/memorias-do-parkinson-i.html#comment-form
Nenhum comentário:
Postar um comentário