quarta-feira, 30 de outubro de 2019

UVAS VERDES






Domingão de sol ardente, onze da manhã, lá vem Deolinda – a “Fabulosa”, primeiro e único símbolo sexual da Vila Invernada – descendo a ladeira, com um daqueles shortinhos descolados que fazem os velhos babarem com gosto. Ela parou na esquina, para trocar dois dedos de prosa com uma conhecida. E ali permaneceu Deolinda por bom tempo, tempo suficiente para que a turma do bar do Carneiro largasse os tacos de bilhar sobre o pano verde, adiasse a próxima partida de dominó, deixasse o buraco para lá e se apinhasse na porta e calçada do estabelecimento – para admirar, o que, na opinião de Romualdo Bastos, o cruzadista, era a oitava maravilha do mundo moderno.

Mas, naquele domingão de sol ardente, a admiração de outrora cedeu espaço ao mais puro e vergonhoso despeito.

-- Ela já foi boa. Hoje, está caída. Os peitos já não são mais os mesmos. Depois que fez regime, a bunda também despencou. Vejam lá: ela tem até varizes. Também deu para todo mundo. Queriam o quê?

Entusiasmados, todos concordaram com o comentário de Teleco, cuja mulher acabara de ser operada, para reduzir o estômago, obesa mórbida que é. O que mais se ouvia ali eram manifestações de apoio ao Teleco: “É isso aí, mano velho. Falou e disse.”

O Velho Marinheiro, então, resolveu pôr ordem na casa:

-- Deolinda continua linda. Alguém aqui já saiu com ela? Se ela deu para todo mundo, não deu para ninguém daqui, porque não é besta. Aqui, só dá pobre desdentado, gente feia e burra. A Deolinda não é para o bico de vocês. Vão se catar.

Mal o Lobo do Mar virou as costas e acenou para Deolinda, que retribuiu o cumprimento com igual entusiasmo. Teleco levantou a dúvida:

-- Será que esse velho safado comeu a Deolinda e ninguém sabe?

As discussões e as apostas duraram o dia todo no bar do Carneiro. (Atualizado em outubro de 2019)

terça-feira, 29 de outubro de 2019

QUASE HISTÓRIAS: UM HOMEM, QUATRO COPOS

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FOTO: ARQUIVO GOOGLE
 
Diariamente, de segunda à sexta-feira, por volta das 18h, ele marcava ponto na padaria do Narciso. Sempre bem vestido, chegava sorridente, acenava para uns e outros. Mas não puxava conversa com ninguém. O pessoal da copa, mais por educação que por dúvida, lhe perguntava se queria o mesmo de sempre. Claro que sim: duas doses de vodka e duas latinhas de cerveja. Um homem, quatro copos. Às vezes, pedia um pedaço de pizza de mussarela, cortada na forma de tira-gosto. Espetava dois palitos, que ele usava de forma alternada, a exemplo do que fazia com os copos. Não era homem de esquentar cadeira. Nem poderia. Nunca o vi sentado nos bancos. Preferia ficar de pé, invariavelmente no mesmo canto do balcão.

Cumprido o ritual, pagava a conta, dava boa gorjeta para os copeiros, acenava para os conhecidos e embarcava no carro. Sempre com a discrição das pessoas bem educadas.

Levei uns dias, talvez semanas, para perceber os detalhes do ritual: um homem, quatro copos, dois palitos, um pedaço de pizza. De segunda à sexta, sempre no mesmo horário, por volta das 18horas.  

Uma noite, meio por acaso, soube por Sales, um dos copeiros, que ele vinha com o pai – homem igualmente discreto e elegante – diariamente à padaria. Pediam duas doses de vodka, duas latinhas de cerveja e um pedaço de pizza, sempre do mesmo sabor: mussarela. O pai morreu há cerca de três anos. Mas não para o filho. (OS/MARÇO DE 2017) 


sexta-feira, 25 de outubro de 2019

RAPIDÍSSIMAS

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IMAGEM: DEPOSITPHOTOS


FULANIZAR O PAPO
É o melhor caminho para matar a boa conversa.

QUERIDAS
Seguem beijo e aperto de mão. A rosa vai depois. Ainda não consegui roubá-la do jardim da vizinha.

O PROBLEMA NÃO É FICAR VELHO
É continuar burro.

AU, AU, AU
“Cachorreiros”: menos viadagem e mais responsabilidade com os animais.

COMPADRE MEU:
Não tenha dúvida: eu sempre vou, mas o voltar é incerto.

SABEDORIA DE PÁRA-CHOQUE
O barato sai caro, mas é o que dá pra comprar.

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IMAGEM: CULTURA MIX

VOX POPULI
O seguro morreu de velho. E foi infeliz a vida toda.

QUESTÃO DE ESCOLHA
Melhor sentar-se à mesa com um adversário leal que entornar uns chopes do que sentar-se à mesa para tomar bom uísque com um aliado oportunista.

VADE RETRO
A desgraça nunca anda só, está sempre com más companhias.

(OS – OUTUBRO DE 2019)


quarta-feira, 23 de outubro de 2019

NEM PENSAR, ANANIAS!

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-- Ananias, diga “não”, e pronto. Não perca tempo com falsas explicações, com mentirinhas nas quais ninguém acredita: “Minha mulher e eu fizemos um pacto: se eu assinar, ela não assina, e vice-versa”. O sujeito vai lá, conversa com sua patroa, amolece o coração dela e você fica sem saída. Acaba por assinar a papelada. Ser fiador? Nunca mais.

-- É que o rapaz, Velho Marinheiro, é meu amigo de longa data...

-- Fie-se nisso. Ele pode até ser honesto, mas depois de amanhã perde o emprego, vira a cabeça, sei lá. E quem terá que pagar o aluguel dele? Ora, você quer perder sua casa ou o pouco que tem na poupança? O sujeito que vá ao banco e pague um seguro fiança.

-- O senhor tem razão, mas é que...

-- Não quero ter razão, Ananias. Não quero que você se estrepe outra vez na vida. Já sei. Não tem coragem. Vou lá com você. Aproveito a ocasião e aviso o homem: “Ananias e sua patroa também não batizam mais ninguém”.

-- Como o senhor sabe que ele me convidou para batizar o filho?

-- Ananias: a desgraça nunca anda só, está sempre com más companhias.

-- O senhor se recusa a batizar uma criança?

-- Não recuso nem batizo. Não sou padre. Eu me recuso é ser padrinho. Tenho vários afilhados. Todos eles só vieram à minha casa para pedir isso e aquilo. Anos atrás, um compadre, depois da cerimônia religiosa e do almoço (que Mafalda e eu pagamos), me sai com essa: “Agora, posso morrer em paz. Minha filhinha tem um segundo pai e uma segunda mãe, está em boas mãos.” Vá se catar! Que cada um cuide dos seus. 

-- E como o senhor faz para se livrar do convite?

-- Ananias: no começo, eu dizia “não quero” e ponto final. Mafalda insistia para que eu não fosse tão direto, grosseiro. Passei a adotar uma estratégia. Se os pais são católicos, digo que somos evangélicos. Se eles são evangélicos, digo que não saímos do terreiro...

-- Mas, afinal, do ponto de vista religioso, o que o senhor é?

-- Filho de Deus. Apesar de agnóstico.  (OS - 2014 - atualizado em outubro de 2019)

terça-feira, 22 de outubro de 2019

HORA DA VITROLA: ALCEU VALENÇA (ANUNCIAÇÃO)


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ANUNCIAÇÃO
De Alceu Valença 
(Com orquestra de Ouro Preto)

Na bruma leve das paixões que vem de dentro
Tu vens chegando prá brincar no meu quintal (bis)

No teu cavalo peito nu cabelo ao vento
E o sol quarando nossas roupas no varal

Tu vens tu vens (bis)
Eu já escuto os teus sinais
A voz do anjo sussurou no meu ouvido
E eu não duvido já escuto os teus sinais
Que tu virias numa manhã de domingo
Eu te anuncio nos sinos das catedrais ...



QUASE HISTÓRIAS: HORAS MORTAS

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IMAGEM GOOGLE


Há quem as amaldiçoe. Eu não. Para mim, cuja opinião pouco ou nada vale, elas são as melhores horas. O telefone não toca, o WhatsApp cochila, a campainha não dá sinal de vida, as vozes da casa dormem o sono possível. Até o galo, sempre atento e arisco, finge-se de morto. As ruas sem gente me dão uma sensação rara e indescritível de liberdade. Claro está que liberdade plena não há. Mas nada é perfeito. Ainda bem. Que graça teriam nossas raras virtudes, sem nossos inúmeros defeitos? Vida insossa, penso eu, a dos candidatos a santo.

Como companhia, nas melhores horas, eu tenho apenas os velhos fantasmas de sempre. Deve ser assim com todo mundo. Ou, ao menos, com quem se dispõe a curtir as horas mortas. No passado, os fantasmas me assombravam. O tempo - sempre ele -, no entanto, mudou minha percepção. Hoje, somos quase íntimos, quase amigos - cúmplices com certeza. Às vezes, eles debocham de minhas poucas ideias. Sabem que, logo, logo, eu as abandonarei no meio do caminho para que ressurjam amanhã como se fossem novidades. Não ligo, deixo a opinião deles pra lá. 

Do futuro espero pouco - o que também não me chateia. Planos são para os jovens, para quem ainda tem uma longa estrada pela frente. Ou, então, para os que fazem de conta que a tem. Iludir-se é uma maneira de sobreviver, uma forma de tocar o barco sem remar. Não os recrimino. Cada um que faça da vida o que bem quer.

Já remoí muito o passado. Hoje, não. O bandido mais machuca que ensina. Procuro me concentrar nas boas lembranças, nem sempre consigo. Mas, em geral, aproveito as horas mortas para sorrir ou chorar. Raramente gargalho. Rabisco palavras e setas. Com as últimas, hábito antigo, eu talvez busque uma saída improvável, embora não saiba para quê nem por quê. Com as primeiras, escrevo besteirinhas que, cedo ou tarde, pouca gente lerá. E ainda dizem que a maior parte dos homens não tem bom senso.

(OS - atualizado em outubro de 2019)


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

RAPIDÍSSIMAS

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FOTO: GOOGLE


NA POLÍTICA

É FLA X FLU. Na vida real, o povo continua mesmo levando uma vidinha de Portuguesa de Desportos, algumas divisões abaixo da primeira.

QUADRILHA

Ninguém podia acusá-los de incoerentes. Ali, todos se odiavam.

COMO SE SABE

A inveja é uma m... O invejoso, seu órgão excretor.

PUNGUISTA

A desilusão bateu, à sorrelfa, a velha carteira de poucos sonhos.

DICOTOMIA

A cabeça, ainda lúcida, planeja, traça e revê estratégias, chega a sonhar. Mas o corpo já não a obedece mais.


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IMAGEM: DEPOSITPHOTOS

MEIO A MEIO

- E aí, seu João, como vai a saúde?
- Da cintura pra cima, tudo ótimo.

AH

Se não fossem os “mas”, “contudo”, “porém”, “todavia”... Que maravilha viver.

BANDO?

Não, não, não. Melhor amar e desamar sozinho.

BALANÇO

Fazer coisa dessas para quê? Não dá para mudar o passado. Melhor viver o pouco tempo que nos resta.

(OS – outubro 2019)