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UMA NOITE, UM GATO
Nietzsche. Foi assim que resolvi
chamá-lo. Era um gato preto, completamente preto, que deu de me aparecer no
muro do quintal, toda noite.
Vinha, comia o que eu lhe oferecia e
se ia, sem mais nem menos. Independente, como todos os gatos.
Uma noite, veio e ficou. Talvez tenha
se dado conta de que ali a comida seria farta e o ambiente acolhedor.
Confesso que de início pensei em lhe
chamar de Mefistófeles, não só pelo susto que me deu no nosso primeiro
encontro, negro dentro do escuro da noite, realçando apenas o brilho claro dos
seus olhos, como também pela sua preferência noturna, fugindo sempre da luz do
dia. Mefistófeles seria, assim, aquele que prefere a noite e que não ama a luz
do dia.
A nossa convivência, porém,
mostrou-me que de noturno e soturno ele nada tinha. Além dos ratos, nunca se
preocupou em caçar nenhuma outra alma inocente.
Muito pelo contrário, era um gato
afável e de bom relacionamento. Logo fez amizade com dois gatos que habitavam a
casa vizinha, Heráclito e Empédocles. Não me pergunte, porém, o por que destes
nomes. Talvez o meu vizinho, homem de bigodes fartos e respeitáveis,
perambulasse pelos estudos filosóficos, pelos pilares do pensamento grego
antigo, do pensamento pré-socrático. Tudo é possível, nesse mundo de Deus e do
tinhoso.
Heráclito era um gato ainda jovem, de
cor amarela, mariscado, arisco e desconfiado conosco, os humanos. Com
Nietzsche, no entanto, deu-se bem. Gostava de vê-los caminhando juntos, no
telhado, ao final da tarde ou simplesmente tomando banho de sol, lado a lado,
na calçada, pela manhã.
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CLÓVIS CAMPÊLO |
Empédocles era mais velho e mais
gordo. Também era mariscado e com matizes que variavam do preto ao cinza. Nunca
se envolvia nas arruaças dos gatos vadios. Sempre estava equidistante e
equilibrado. Confesso que também nunca o vi sobre os telhados em busca das
fêmeas no cio. Era um gato meio estranho e reservado. Mas, relacionava-se bem
com Nietzsche e isso, para mim, bastava.
Essa amizade heterogênea e
inconsistente, entretanto, pouco durou. Uma noite, do mesmo modo como chegara,
Nietzsche se foi. Depois de jantar sardinhas com arroz (sempre se recusara a
experimentar a ração felina que eu comprara, induzido pela propaganda
televisiva), bebeu um pouco de água, miou um miado qualquer e lançou-se sobre o
muro para o que eu imaginava como sendo apenas mais um passeio noturno.
Foi a última vez que o vi.
Recife, 2010
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